Veneno no copo: metanol deixa de ser risco distante, e intoxicações passam a ter um novo padrão. Entenda os males

Qualquer pessoa que tenha consumido bebida alcoólica e apresente sintomas associados à intoxicação deve buscar imediatamente uma emergência médica

Por Cinthya Leite Publicado em 01/10/2025 às 18:39 | Atualizado em 01/10/2025 às 18:48

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Um veneno invisível pode estar no copo de quem brinda em festas ou bares. O metanol, uma substância altamente tóxica, já provocou mortes em São Paulo e está associado a óbitos investigados no Agreste pernambucano, após o consumo de bebidas adulteradas. Diferentemente de surtos anteriores, restritos a populações em situação de vulnerabilidade ligadas ao álcool combustível, o novo padrão preocupa autoridades e médicos porque coloca em risco qualquer consumidor de destilados aparentemente comuns (de diferentes marcas e procedências), vendidos em bares e ofertados em festas, como vodca, gin e uísque. 

Essa mudança de padrão amplia o risco e alcança consumidores que jamais se imaginariam expostos a essa ameaça. 

Médicos ouvidos pelo JC alertam que, além de provocar danos irreversíveis à visão como cegueira, a intoxicação por metanol também pode afetar outras áreas do sistema nervoso central, levar à perda de consciência, coma e até morte

O que é o metanol e por que ele mata

"O metanol pode surgir naturalmente, em pequena quantidade, durante processos de fermentação de frutas e madeiras, mas também é produzido industrialmente a partir do gás natural, sendo usado para fabricar formol e solventes", explica o médico toxicologista Sérgio Graff, com 40 anos de experiência na área.

O problema está em como o organismo metaboliza a substância. Ao contrário do etanol (álcool comum), que é transformado em ácido acético e água, o metanol gera formaldeído e ácido fórmico. É o ácido fórmico, segundo explica Sérgio Graff, o verdadeiro vilão: ele ataca o nervo óptico, causa cegueira e compromete a respiração celular, o que pode levar à morte.

"Se o metanol fosse eliminado inalterado, não faria mal algum. O perigo é justamente a tentativa do organismo de metabolizá-lo, produzindo compostos altamente tóxicos", resume Sérgio Graff, que estará no Recife, na próxima semana, para palestrar durante o 18º Congresso Brasileiro de Clínica Médica (CBCM), que ocorre de 8 a 11 de outubro no Centro de Convenções de Pernambuco. 

Sintomas: da "bebedeira" à cegueira

A intoxicação por metanol é traiçoeira porque, nas primeiras horas, os sinais se confundem com uma simples bebedeira. Dor de cabeça, náuseas, vômitos, tontura e confusão mental são comuns.

"O risco maior é que os sintomas graves surgem 12 a 24 horas depois, quando o paciente pode apresentar turvação visual repentina ou até perda total da visão", alerta o neurologista Marcílio Oliveira, chefe do Serviço de Neurologia do Hospital da Restauração (HR), no Recife.

Ele reforça que, mesmo pequenas quantidades, pode haver sintomas: "O metanol não é para consumo humano. Em doses baixas, já pode causar dor abdominal, náuseas, vômitos e evoluir para quadros neurológicos graves, como encefalopatia, que leva a coma e convulsões". 

O desafio do diagnóstico

Segundo Sérgio Graff, o diagnóstico definitivo só pode ser feito por análise laboratorial, disponível em poucos centros especializados. "Mesmo em São Paulo, se o paciente chega à emergência de madrugada, dificilmente consegue esse exame a tempo", alerta.

Na prática, muitos médicos precisam suspeitar do quadro com base na clínica (sintomas e relato do paciente ou acompanhante) e iniciar o tratamento mesmo sem confirmação. "É a diferença entre o toxicologista que vive a realidade e o que só conhece o livro-texto", afirma.

Tratamento: um antídoto paradoxal

O antídoto considerado ideal, o fomepizol, não está disponível no Brasil. Por isso, especialistas falam que se usa o próprio etanol como tratamento. Parece contraditório, mas tem uma explicação: ao saturar a enzima que metaboliza o álcool, o etanol impede que o metanol seja transformado em ácido fórmico, o que permite que seja eliminado pela urina.

"Mas atenção: isso deve ser feito em ambiente hospitalar, de forma controlada. Não é tratamento caseiro", reforça Sérgio Graff. 

O que fazer para se proteger

O caminho mais seguro é a prevenção. A Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa) orienta os consumidores a evitar bebidas de procedência duvidosa, sem rótulo, com lacres danificados, logotipos irregulares ou preços muito abaixo do mercado.

"É fundamental optar por estabelecimentos de confiança e que apresentem nota fiscal. Donos de bares também podem se proteger exibindo a comprovação de origem dos produtos para tranquilizar os clientes", diz Graff.

E a recomendação é clara: se a pessoa sentir sintomas diferentes do habitual após ingerir bebida alcoólica, deve-se procurar imediatamente atendimento médico. "Não se deve esperar que as manifestações passem sozinhas."

Alerta às autoridades

A Apevisa determinou intensificação das fiscalizações e coleta de amostras suspeitas para análise. Os casos devem ser notificados imediatamente ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), e o suporte clínico especializado pode ser acionado pelo CIATox Pernambuco (0800 7226001).

Na visão de Sérgio Graff, esse cenário alerta para a necessidade de investimentos em centros de toxicologia, comparando a necessidade à rede de distribuição de soros antiofídicos. "Assim como temos soros contra picada de cobra e escorpião disponíveis no Brasil inteiro, precisamos ter antídotos e diagnósticos para intoxicações químicas."

Um alerta que pode salvar vidas

Para os especialistas, a principal mensagem é clara: a intoxicação por metanol é 100% prevenível. Basta não haver exposição.

"Sem exposição, não há intoxicação. Por isso, informação e prevenção são as melhores armas contra esse risco invisível", diz Graff.

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