SUS, 35 anos: um sistema gigante diante de velhos dilemas, gargalos e fragilidades
Maior sistema público de saúde do mundo, o SUS faz 35 anos, mas ainda é preso a nós históricos de gestão, integração e valorização profissional
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Criado pela Constituição de 1988 e oficializado em 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS) representa uma das maiores conquistas da democracia do Brasil. Ele completa 35 anos nesta sexta-feira (19). Ao longo do tempo, consolidou-se como o maior sistema público de saúde do mundo, a serviço de mais de 200 milhões de brasileiros, e se tornou referência internacional em vacinação, transplantes, combate a epidemias.
Nas últimas três décadas e meia, o SUS foi responsável pela erradicação da poliomielite e pelo maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo, além de ter sido o pilar no enfrentamento da pandemia de covid-19.
A atenção primária é hoje a porta de entrada do SUS. As Unidades Básicas de Saúde (UBS) presentes em todo o País promovem o cuidado inicial, a orientação e prevenção. Para isso, é preciso contar com profissionais que fazem o SUS acontecer: desde o agente comunitário que conhece cada pessoa pelo nome até o enfermeiro e médico de família que sabem das histórias da comunidade.
Mas, por trás desses títulos imponentes, persistem velhos problemas de gestão, fragmentação e falta de valorização dos profissionais.
Especialistas ouvidos pelo Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (SJCC) trazem falas que revelam tanto a potência quanto os gargalos de um sistema que completa 35 anos oscilando entre avanços inovadores e falhas estruturais.
A rede que não se fala: o desafio da integração
Se há um ponto comum na crítica dos especialistas, é a desarticulação da rede de saúde. "O grande problema que vivemos, e isso se intensifica na Região Metropolitana do Recife, é uma certa desintegração de um sistema que deveria ser único", disse o médico sanitarista Tiago Feitosa, professor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A declaração de Tiago foi feita durante episódio recente do programa Giro Metropolitano, do SJCC, em uma conversa sobre o serviço de saúde pública. Em Pernambuco, de acordo com Tiago, a gestão da saúde é fortemente estadualizada, com hospitais e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) que assumem protagonismo.
Mas isso gera distorções. "As doenças mais comuns hoje são crônicas, como hipertensão, diabetes e problemas respiratórios dos idosos. E isso não se resolve em pronto atendimento. Precisa de atenção contínua, ambulatorial. Sem coordenação, o paciente procura a UPA, recebe um remédio para a crise, mas volta a ter pressão alta no dia seguinte."
O diagnóstico é duro: o excesso de unidades de urgência e a falta de integração com a atenção básica criam um círculo vicioso de superlotação e ineficiência.
"Falta uma coordenação do SUS que junte os municípios, potencialize o que cada um tem e organize os fluxos para as unidades estaduais. Isso já acontece em regiões como Belo Horizonte, que é um exemplo de integração bem-sucedida", compara.
O médico que não chega à ponta
Se o problema é de rede, também é de gente. A presença de médicos especializados em atenção primária ainda é irregular no país.
A médica de saúde da família e comunidade Giovanna Brito, preceptora do Programa de Residência da sua especialidade da Secretaria de Saúde do Recife, vive essa realidade de perto. Em entrevista a um dos programas Debate da Super Manhã, da Rádio Jornal, realizado neste mês de setembro, Giovanna falou que considera a estratégia de saúde da família "a única política capaz de chegar em todos os cantos do Brasil: do quilombo ao ribeirinho". Mas o modelo enfrenta entraves sérios.
"Em 2023, Recife fez o primeiro concurso exigindo residência em medicina de família. Mas ninguém foi chamado. Preferiram trazer profissionais do Mais Médicos, muitos sem essa formação. O resultado é um contrassenso: médicos formados aqui, prontos para trabalhar, ficam de fora; enquanto o País importa profissionais de fora. Essa conta não fecha."
A raiz do problema, segundo Giovanna, está na forma como a atenção primária é encarada. Ainda não é vista como carreira de longo prazo. "Muitos médicos assumem postos de saúde apenas de forma transitória, até ingressar em uma residência de especialidade focal. Isso gera alta rotatividade e fragiliza o cuidado contínuo da comunidade", disse.
O impacto é direto na população. "Hoje, em muitas unidades, um médico assume equipes demais, chegando a ser responsável por mais de 3 mil pessoas. Ninguém consegue garantir cuidado integral nesse cenário."
Profissionais invisíveis: a ausência do médico substituto
Também durante um dos programas Debate da Super Manhã, da Rádio Jornal, realizado neste mês de setembro, o médico clínico Marcus Villander, diretor científico da Sociedade Pernambucana de Clínica Médica (SPCM) trouxe outro ponto crítico: a falta de mecanismos de substituição. Ele compara com o Judiciário, que tem juízes substitutos para evitar a paralisação de processos.
"E na Saúde? Quando um médico adoece ou tira férias, quem fica cuidando daquela comunidade? Não existe a figura do médico substituto. Isso é um absurdo. O Executivo precisa aprender com outros poderes e criar estratégias para que a população não fique desassistida", ressaltou Villander.
Segundo ele, há médicos dispostos a trabalhar, mas faltam políticas que valorizem o médico clínico e o médico de família e comunidade. "Não é só oferecer um posto no meio da selva. É preciso garantir condições mínimas para prestar um atendimento digno, seja preventivo ou curativo. Precisamos parar com políticas de curto prazo e organizar o sistema com base em experiências que funcionam, aqui e lá fora."
Inovações que apontam futuro
Apesar das falhas, há experiências promissoras. O Recife, por exemplo, implantou o aplicativo Conecta Recife para agendamento digital de consultas.
"Eu abro 30 vagas por semana pelo aplicativo. Todas se preenchem. A taxa de falta é de apenas 2% a 5%. O sistema manda lembretes no WhatsApp, e o usuário chega sabendo dia e hora. Isso é maravilhoso de ver no SUS", relatou Giovanna.
O sucesso desafia preconceitos. "Muita gente dizia: 'Será que a população vai saber usar?'. Mas praticamente todo mundo tem um smartphone em casa. Às vezes falta comida, mas alguém tem celular. O agente comunitário ajuda a ensinar, e as pessoas adoram a facilidade", completou.
Outras medidas, como gestores nas unidades e ponto eletrônico para médicos, vêm trazendo mais responsabilidade e transparência. "São coisas óbvias, mas que não existiam. O SUS precisa disso: profissionalismo e gestão eficiente."
35 anos: entre a potência e a precariedade
O balanço é claro: o SUS é uma conquista civilizatória, mas ainda enfrenta dilemas de juventude. Avançou na universalização, na prevenção e no alcance territorial, mas patina na integração entre os níveis de atenção, na valorização dos médicos de família e na modernização da gestão.
Para Tiago Feitosa, a palavra-chave é coordenação. Para Giovanna Brito, é valorização. Para Marcus Villander, organização.
O futuro do SUS, aos 35 anos, dependerá de enfrentar seus nós históricos sem perder sua essência universalista. É um sistema que já mudou a vida de milhões, mas que ainda tem muito a aprender para continuar salvando vidas nas próximas décadas.