Além do colesterol: cardiologia coloca ansiedade e depressão no radar de riscos para o coração

Documento da Sociedade Europeia de Cardiologia orienta que ansiedade e depressão não são apenas problemas emocionais: elas elevam risco cardiovascular

Por Cinthya Leite Publicado em 03/09/2025 às 19:27 | Atualizado em 03/09/2025 às 19:33

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Durante décadas, falar em prevenção de doenças cardíacas significava checar pressão arterial, colesterol, glicose, fazer exercícios e não fumar. Agora, a cardiologia dá um passo histórico: pela primeira vez, a Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC, na sigla em inglês) publica uma diretriz oficial que reconhece a ansiedade e a depressão também como fatores de risco para o coração - tão importantes quanto os já clássicos colesterol alto ou hipertensão. 

A diretriz é uma espécie de "manual" que reúne as melhores evidências científicas disponíveis sobre o assunto e orienta médicos no mundo todo sobre maneiras de diagnosticar, tratar e acompanhar pacientes.

O documento foi apresentado na reunião anual da ESC, que foi encerrada na última segunda-feira (1º), em Madri, na Espanha, com a participação de 30 mil profissionais. A diretriz representa uma mudança de paradigma: a saúde mental (antes vista como algo secundário, que ficava à margem das preocupações principais, atrás de fatores clássicos como pressão alta, colesterol ou diabetes) passa para o centro do cuidado cardiológico.

Do colesterol à tristeza: um cuidado mais amplo do coração

"O cardiologista sempre olhou para os fatores de risco tradicionais: checar a pressão, medir colesterol, avaliar glicemia. Mas a prevalência de transtornos mentais, como depressão e ansiedade, é muito elevada nessa população, e eles estão associados a maior risco cardiovascular. Por isso, precisamos ampliar nosso olhar", afirma o cardiologista Eduardo Lapa, doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e fundador do Cardiopapers, uma rede que se tornou uma das principais referências em cardiologia no Brasil. 

 

FÁBIO H. MENDES/E6 IMAGENS
"Estudos mostram a relação bidirecional: doenças mentais podem se associar a maior risco de doenças cardíacas e, ao mesmo tempo, cardiopatias podem levar a quadros ansiosos ou depressivos", diz Eduardo Lapa - FÁBIO H. MENDES/E6 IMAGENS

Essa ampliação, segundo Lapa, já vinha se desenhando. Em 2022, a Associação Americana do Coração (AHA, na sigla em inglês) incluiu o sono em sua lista de fatores essenciais para a saúde do coração. Agora, a ESC dá um passo além: integra oficialmente a saúde mental ao conceito de saúde cardiovascular. O cuidado, antes centrado em números e exames, torna-se cada vez mais amplo, como deve ser.

A dança entre emoções e batimentos

O coração não bate sozinho. "Ele dança no compasso das nossas emoções", descreve o psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino, à frente do projeto Novos Papers Psiquiatria - iniciativa voltada à disseminação crítica e acessível do conhecimento científico na área. "Quando a mente se agita, o coração acelera. Quando a tristeza pesa, o coração parece perder força."

A ciência confirma: a relação entre emoção e coração é de mão dupla. "Pessoas com depressão e ansiedade produzem mais hormônios do estresse, como adrenalina e cortisol. Dormem pior, alimentam-se mal, abandonam remédios e exercícios. Somando os efeitos biológicos e comportamentais, o risco cardíaco cresce de forma significativa", explica Amaury, doutor em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFPE. 

O resultado dessa combinação tende a se traduzir em pressão elevada, inflamação e maior risco de arritmias ou infarto. 

E o contrário também acontece. Geralmente quem sofre um infarto recente, enfrenta internações frequentes ou vive com insuficiência cardíaca desenvolve ansiedade, medo, insegurança e tristeza. "Não é de surpreender. A doença cardiovascular grave tem impacto emocional profundo. É um círculo em que emoção e coração se influenciam mutuamente", reforça Eduardo Lapa, que também é diretor da Afya. 

Pois é, agora especialistas alcançam um consenso oficial de que existe um círculo vicioso: pacientes com transtornos mentais, como ansiedade e depressão, têm risco aumentado de desenvolver doenças cardiovasculares. Por outro lado, pacientes com insuficiência cardíaca e outras cardiopatias apresentam maior chance de desenvolver transtornos mentais. 

Um marco histórico para a psiquiatria

Para Amaury Cantilino, a decisão da ESC tem peso histórico. "Significa que não há mais como cuidar do coração sem olhar para a saúde mental. Depressão e ansiedade passam a ser considerados fatores de risco relevantes, assim como hipertensão ou colesterol elevado. Isso muda a prática clínica: impulsiona hospitais e consultórios a incluírem avaliação psicológica e psiquiátrica no cuidado cardiológico", frisa o psiquiatra.

Mais que um avanço técnico, é também uma forma de reduzir o estigma. "Quando dizemos que ansiedade e depressão são fatores de risco cardiovascular, colocamos esses problemas no mesmo patamar de colesterol ou glicose. Isso tira o peso da culpa pessoal e mostra que tratar a mente é tão essencial quanto tomar estatina ou controlar a pressão", sublinha Amaury. 

RENATO RAMOS/JC IMAGEM
Para o psiquiatra Amaury Cantilino, a decisão da ESC tem peso histórico - RENATO RAMOS/JC IMAGEM

A triagem começa com perguntas simples

A nova diretriz não exige grandes exames. Pelo contrário: recomenda que o cardiologista faça duas ou três perguntas rápidas sobre humor e ansiedade em cada consulta. "São questões que levam segundos. Perguntar se o paciente tem se sentido para baixo e sem vontade de fazer as coisas já abre espaço para identificar sinais que podem sugerir depressão", diz o cardiologista Eduardo Lapa.

A prática é simples, mas traz desafios. "É mais uma tarefa dentro da consulta, que já é cheia. Além disso, não fomos treinados para isso na faculdade ou na residência. Exige adaptação. E quando o diagnóstico é positivo, vem outro obstáculo: o acesso ao tratamento. Psicólogos e psiquiatras nem sempre estão disponíveis, especialmente no sistema público", alerta Lapa.

O psiquiatra Amaury Cantilino concorda, mas defende que começar é essencial. "A triagem breve é o primeiro passo. Depois, instrumentos mais completos podem confirmar o diagnóstico e, se necessário, encaminhar o paciente para psicologia ou psiquiatria. O importante é não deixar esses casos invisíveis."

Tratamento integral: corpo, mente e vida social

E o que muda para quem já tem doença cardíaca, como insuficiência cardíaca, coronariopatia ou síndrome coronariana aguda?

"Além da psicoterapia e, quando necessário, do uso de medicação, a diretriz destaca a importância de programas de reabilitação cardíaca que incluam suporte psicológico estruturado. Também é fundamental olhar para fatores sociais, como isolamento, dificuldades econômicas e falta de apoio familiar, que agravam tanto a saúde mental quanto a cardíaca", reforça Amaury. 

Ou seja, não basta tratar apenas a doença: é preciso oferecer um cuidado integral que dê suporte ao modo de vida do paciente. Nesse contexto, o psiquiatra cita o médico russo Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904): "Se a vida não tiver equilíbrio, adoecemos". 

Integração ainda é rara, mas possível

Hoje, a colaboração entre cardiologistas e psiquiatras ainda é exceção. Mas o cenário pode mudar. "O documento da ESC sugere modelos colaborativos, em que o cardiologista segue protocolos claros e tem apoio remoto de equipes de saúde mental. Isso pode ser feito até por telemedicina, reduzindo custos e barreiras geográficas", explica o psiquiatra.

No Brasil, já existem experiências no Sistema Único de Saúde, em que psiquiatras dão suporte a equipes de saúde da família. "É um caminho que poderia ser ampliado também na saúde suplementar. Recentemente, participei de um treinamento com cardiologistas, e eles relataram sair mais preparados para lidar com depressão e ansiedade em seus pacientes. Esse tipo de diálogo entre especialidades pode ser transformador", relata Amaury.

Um alerta para pacientes e familiares

A prevalência de ansiedade e depressão em pacientes cardíacos pode chegar a quase 30%, segundo os estudos compilados na diretriz. "Os números variam, mas o recado é o mesmo: não surpreendem, porque já sabíamos disso há anos. A função da diretriz é justamente reforçar o que precisa virar rotina no consultório", diz o cardiologista Eduardo Lapa. 

E a mensagem final, tanto de cardiologistas quanto de psiquiatras, é clara: cuidar do coração passa por cuidar da mente. "A frase clássica 'mente sã, corpo são' continua atual. Se você tem sintomas de ansiedade ou depressão, converse com um médico. E se já trata problemas cardíacos, não ignore sinais de sofrimento emocional. O médico pode orientar e encaminhar. Afinal, o indivíduo é um só: corpo e mente precisam ser tratados juntos”, conclui Lapa.

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