Da cadeira de rodas ao jaleco: o médico que buscou o próprio diagnóstico e hoje ajuda pacientes a descobrir o deles

Médico geneticista que já enfrentou a espera por diagnóstico, Diogo Soares presidirá congresso nacional da especialidade e fortalece genética no País

Por Cinthya Leite Publicado em 16/08/2025 às 19:08 | Atualizado em 16/08/2025 às 19:38

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Aos 37 anos, o médico geneticista recifense Diogo Soares já conhece a medicina de dois lados: como paciente e como profissional que hoje ajuda a transformar a vida de quem enfrenta doenças com diagnóstico e tratamento complexos. Ele presidirá o 36º Congresso Brasileiro de Genética Médica, de 24 a 27 de setembro, no Recife, e tem se destacado como uma das principais vozes na área no País, com atuação intensa na integração da genética a outras especialidades médicas.

Em entrevista à jornalista Cinthya Leite, colunista de Saúde e Bem-Estar do JC, Diogo falou sobre os desafios do acesso a exames e tratamentos, compartilhou sua trajetória pessoal (incluindo o período em que cursou medicina em cadeira de rodas durante a reabilitação de uma cirurgia complexa) e explicou como essa experiência moldou sua forma de atender pacientes.

Ao longo do bate-papo, ficou claro que sua paixão pela genética vai muito além do conhecimento técnico: ela nasce da vivência, da empatia e da urgência de levar diagnóstico e tratamento a quem precisa.

JC - Como está o cenário da genética médica no Brasil hoje?

DIOGO SOARES - A genética médica é a menor especialidade do Brasil, com cerca de 1.500 especialistas, 80% deles no Sul e Sudeste. Há capitais que nem têm geneticista. Mas, apesar disso, a falta de especialistas não é, na minha visão, a maior barreira, porque temos recursos como a telemedicina. O problema maior é o acesso aos exames e tratamentos. No Sistema Único de Saúde (SUS), desde 2014, existe uma portaria que habilita serviços de referência em doenças raras e repassa verba federal para custear diagnóstico e acompanhamento. Isso foi um avanço, mas não resolve tudo. Ainda dependemos muito de pesquisas para garantir o acesso ao diagnóstico, e alguns tratamentos chegam a custar milhões de reais.

JC - O Congresso Brasileiro de Genética Médica também vai trazer essa discussão para a pauta?

DIOGO SOARES - Sim. Vamos ter um encontro de associações de pacientes para discutir a realidade local, trazer representantes do Ministério da Saúde e da Sociedade Brasileira de Genética Médica, e explicar como ocorre a incorporação de medicamentos ao SUS. Queremos que as associações se fortaleçam para acelerar esse processo. Além disso, vamos oferecer capacitação para profissionais da atenção básica (médicos, enfermeiros e agentes comunitários) para que reconheçam suspeitas de doenças genéticas e saibam o que fazer nos primeiros passos.

JC - Muitas pessoas ainda associam genética apenas ao câncer. Quais outras especialidades precisam se aproximar dessa área?

DIOGO SOARES - A pediatria já é muito próxima, porque 75% das doenças raras se manifestam antes dos 5 anos de idade. Mas a cardiologia é fundamental: na hipercolesterolemia familiar, por exemplo, identificar a mutação genética é essencial, porque há medicamentos que só funcionam para determinados perfis genéticos. Isso pode evitar que uma pessoa infarte aos 30 anos. Já vi pacientes com alimentação perfeita e peso adequado, mas colesterol altíssimo por causa de um traço genético. Com o diagnóstico, podemos testar filhos e até começar tratamento aos 5 ou 7 anos. Outro exemplo é a miocardiopatia: metade dos casos tem causa genética, e já existe recomendação internacional para avaliação genética de todos os pacientes diagnosticados. Arritmias, insuficiência cardíaca precoce e infarto em idade jovem também acendem o alerta para investigar.

JC - A geriatria também? 

DIOGO SOARES - Com certeza. É uma especialidade que precisa se aproximar mais da genética, pois 25% das doenças raras se manifestam tardiamente. Já a nefrologia vem se integrando mais à genética em alguns centros, e a endocrinologia, principalmente na área de metabolismo ósseo, também precisa dessa aproximação. Até doenças autoimunes podem ter base genética.

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A genética médica ainda depende muito de pesquisas para garantir o acesso ao diagnóstico, e alguns tratamentos chegam a custar milhões de reais - FREEPIK/BANCO DE IMAGENS

JC - E as doenças imunológicas, como elas se relacionam com a genética?

DIOGO SOARES - Existem mais de 500 doenças em que o sistema imunológico responde menos do que deveria ou mais do que deveria. Na covid, por exemplo, vimos casos de gatilho genético que provocaram hiperinflamação, o que pode levar a trombose e danos graves. Durante o nosso congresso, vamos contar com nomes de referência mundial, como uma pesquisadora que participou da criação da classificação internacional das imunodeficiências e foi presidente da Cruz Americana de Imunologia.

JC - O congresso também terá um foco especial na genética aplicada à oncologia mamária, certo?

DIOGO SOARES - Isso mesmo. Vamos receber uma especialista que esteve presente desde a descoberta do primeiro gene relacionado até as pesquisas mais atuais. A ideia é sensibilizar ginecologistas, mastologistas, oncologistas e terapeutas para a importância da genética nesse contexto. Vai haver curso pré-congresso, conferências e mesas-redondas multidisciplinares para discutir como o diagnóstico genético pode mudar a conduta clínica.

JC - Como é o seu trabalho com pacientes com doenças raras?

DIOGO SOARES - Atendo pacientes com doenças raras e de várias idades. Minha atuação vai desde o acompanhamento de um feto, quando no pré-natal já é identificada alguma malformação, até pacientes idosos. Nesses casos, a gente entra junto com o especialista em medicina fetal para decidir se vai ter biópsia, se vamos fazer teste genético ou se é melhor esperar o parto. 

JC - Há algum caso que o senhor possa compartilhar conosco? 

DIOGO SOARES - Certa vez, um obstetra entrou em contato comigo depois de identificar uma malformação no feto. Fizemos a consulta com os pais e indicamos investigação genética. Em duas semanas, ainda durante a gestação, já tínhamos o diagnóstico. Sabíamos que era uma doença genética que poderia causar malformação de traqueia. Então, já alinhamos que o parto teria que acontecer num centro de referência. Fizemos consultas prévias com cirurgião pediátrico e cirurgião torácico. Assim que o bebê nasceu, já foi avaliado, entubado e conduzido pela equipe cirúrgica. Isso mudou completamente o resultado. Sem essa investigação genética, provavelmente não teríamos identificado a malformação a tempo.

JC - Quais outros casos o senhor acompanha?

DIOGO SOARES - Além de crianças com diagnóstico de autismo e deficiência intelectual, atendo adultos jovens que buscam aconselhamento genético por perdas gestacionais e pacientes com câncer. Hoje a oncologia depende cada vez mais da genética para personalizar o tratamento e a prevenção. Também atendo idosos. Muitas vezes, uma doença de evolução atípica nessa faixa etária pode ter origem genética. Já vi casos de diabetes tratados por seis anos sem sucesso que, na verdade, tinham causa genética. Quanto mais cedo tratamos, melhor a evolução, independentemente da idade. Isso vale para doenças cardíacas, renais, neurológicas e oncológicas.

JC - Esse tema está no centro do Congresso Brasileiro de Genética Médica? 

DIOGO SOARES - Exatamente. O objetivo é sensibilizar a comunidade médica para a importância dessa integração entre genética e outras especialidades. Vamos ter um curso pré-congresso de introdução à genética para cardiologistas, neurologistas, clínicos e outros especialistas, com um dia inteiro de imersão. A ideia é que o profissional saiba como conduzir o paciente, o que pedir inicialmente, quando encaminhar e como trabalhar junto com o geneticista.

JC - E como o senhor decidiu seguir na genética médica?

DIOGO SOARES - Na minha graduação, não havia disciplina obrigatória de genética clínica. Sempre gostei de pediatria e de atender adultos, e me interessava pelas tecnologias da área. Fui fazendo estágios, acompanhando profissionais e me apaixonei. Fiz fellowship em São Paulo, indo uma vez por mês para aprender. Com a pandemia, fiquei quase dois anos sem ir e, quando voltei, percebi que a demanda em São Paulo continuava alta. Decidi inverter a base, ampliar meu trabalho local e fortalecer a genética no hospital, integrando-a a outras áreas.

JC - Essa escolha teve alguma relação com a sua história pessoal?

DIOGO SOARES - Sim, e muito. Acho que essa escolha começou antes mesmo de eu saber o que era genética. Desde criança, a medicina fazia parte dos meus sonhos. Aos 7 anos, pedi de presente de aniversário uma maletinha de médico. Aos 10 anos, um estetoscópio. Só que, antes de me tornar médico, eu tive que viver algo que mudaria completamente a minha forma de enxergar a profissão: eu me tornei paciente.

JC - De que forma a sua própria trajetória como paciente entrou nesse caminho?

DIOGO SOARES - Tenho uma neuropatia autoimune (condição em que o próprio sistema imunológico, por erro, passa a atacar os nervos periféricos - aqueles que ligam o cérebro e a medula espinhal ao resto do corpo), e hoje estou em remissão. Mas foi um caminho longo e desgastante até chegar ao diagnóstico, dado pelo médico clínico Francisco José Trindade Barreto, conhecido como Chicão, aos meus 13 anos. Antes disso, passei por inúmeros especialistas, fiz exames, recebi opiniões diferentes e, muitas vezes, saí das consultas sem respostas. Vivi a incerteza e a ansiedade que hoje vejo em tantos pacientes.

JC - Certamente essa experiência o marcou profundamente...

DIOGO SOARES - Sem dúvidas. No meu caso, a doença exigia um tratamento complexo. Cheguei a um ponto em que a dor e as limitações eram tão intensas que descobri a possibilidade de uma cirurgia para implantar um marca-passo especial. Pesquisei, encontrei especialistas, viajei para São Paulo e realizei o procedimento. Depois veio a parte mais difícil: a reabilitação. Fisioterapia todos os dias, um processo lento, exigente e que me colocou à prova não só fisicamente, mas emocionalmente. Durante um bom tempo, frequentei a faculdade de medicina em cadeira de rodas. Eu conciliava as aulas com o tratamento e a fisioterapia. Foi um período desafiador, mas também transformador. Cada obstáculo que eu superava me mostrava que, apesar das limitações, eu podia seguir. Aos poucos, fui recuperando mobilidade e me adaptando a uma nova rotina. 

JC - A genética, então, entrou na sua vida nesse contexto? 

DIOGO SOARES - Sempre gostei de pediatria, clínica, tecnologia… E percebi que a genética reunia tudo isso. Ela me permitia transitar entre diferentes idades e especialidades, lidar com doenças raras e, ao mesmo tempo, trabalhar na fronteira do conhecimento médico. Comecei a buscar estágios, fiz um fellowship em São Paulo e aprendi com profissionais de referência. Hoje, vejo que minha trajetória fechou um ciclo. Vivo a medicina que sempre quis, mas com um diferencial que a experiência pessoal me deu: compreender, de verdade, o que significa estar do outro lado da mesa. Quando atendo alguém, não enxergo só exames e sintomas; enxergo uma história, uma luta e o medo de quem espera respostas. E é isso que guia o meu trabalho todos os dias.

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