"O clínico trata de tudo: é insustentável depender só de subespecialistas", diz presidente do Congresso Brasileiro de Clínica Médica

O médico clínico Marcus Villander reflete sobre o olhar integral na assistência, com foco em prevenção e tratamento de muitas das doenças comuns

Por Cinthya Leite Publicado em 11/08/2025 às 16:05 | Atualizado em 11/08/2025 às 16:34

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O médico clínico Marcus Villander, natural de Salgueiro, no Sertão pernambucano, recebeu a missão de presidir o 18º Congresso Brasileiro de Clínica Médica em um momento crucial para a especialidade. Pela primeira vez, o evento será realizado no Nordeste, o que simboliza a retomada e o fortalecimento da Clínica Médica no Brasil. 

"Nos últimos 10 anos, estamos reaquecendo a formação de clínicos, pois é insustentável depender apenas de subespecialistas", diz Marcus Villander, nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite, colunista de Saúde e Bem-Estar deste JC. 

Durante a conversa em um dos episódios do videocast liderado pela jornalista, o médico reflete sobre a importância do olhar integral do médico clínico, que atua no cuidado amplo do paciente adulto e que atualmente enfrenta os desafios da prevenção uma população que vive com múltiplas doenças.

Com mais de 35 anos de história, a Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM) ganha novo fôlego com a 18ª edição do congresso da especialidade em outubro, no Centro de Convenções de Pernambuco, e que será liderado por Marcus Villander, que é mestre em Ciências pelo Instituto Aggeu Magalhães, unidade da Fiocruz em Pernambuco, e diretor científico da Sociedade Pernambucana de Clínica Médica.

O evento acontece justamente num momento em que a especialidade se reafirma como essencial para o sistema de saúde brasileiro, ao conciliar prevenção, diagnóstico e tratamento com eficiência e humanidade.

JC - O Congresso Brasileiro de Clínica Médica chega pela primeira vez ao Nordeste e marca o momento de retomada e fortalecimento dessa especialidade tão essencial para o cuidado integral dos pacientes. Como o senhor vê esse momento atual da Clínica Médica no Brasil?

MARCUS VILLANDER - O clínico, o especialista em clínica médica, que a gente chama muitas vezes de clínico ou clínico geral, é um especialista não focal. Ele terminou a faculdade, fez uma especialização na área, que é uma residência de dois a três anos em Clínica Médica, e passa a ser um especialista em doenças sistêmicas (aquelas que afetam vários órgãos ou sistemas do corpo humano), em olhar o organismo como um todo. É diferente do especialista focal. O clínico trabalha para evitar e prevenir doenças, trata grande parte das doenças comuns na população. Para se ter ideia, em torno de 80% das doenças podem ser tratadas pelo especialista em clínica médica, que oferece assistência a adultos: dos 16, 18 anos até o fim da vida.

JC - Quem escolhe Clínica Médica o faz por qual motivo?

MARCUS VILLANDER - Pelo propósito e pela visão de ser o médico que trata de tudo. Fazemos rastreamentos, orientamos vacinas, mudanças de estilo de vida, prevenção de doenças; não só tratamos quem já está doente.

JC -  Por que a visão ampla e integrada do organismo é tão essencial no cuidado atual dos pacientes?

MARCUS VILLANDER - Nossa diferença para os demais especialistas do adulto pela visão de que somos especialistas não focais; os demais são especialistas focais. O cardiologista olha para a saúde cardiovascular; o neurologista para o sistema nervoso; o nefrologista para o rim; enquanto nós olhamos para a interação de todos esses órgãos num só.

FREEPIK/BANCO DE IMAGENS
Muitas especialidades (cardiologia, nefrologia, endocrinologia) exigem a Clínica Médica como pré-requisito - FREEPIK/BANCO DE IMAGENS

JC - A visão ampla do clínico é fundamental diante das mudanças demográficas e das múltiplas doenças que acometem os pacientes atualmente. Como essa abordagem ajuda a enfrentar esses desafios da medicina contemporânea?

MARCUS VILLANDER - A pirâmide etária está se invertendo: cada vez menos jovens, cada vez mais idosos. Nesse envelhecer, temos pessoas com muitas doenças ao mesmo tempo: uma doença neurológica, diabetes, hipertensão, doença renal, alteração osteoarticular… Agora imagine a dificuldade para qualquer pessoa ir a um a um desses médicos: marcar consulta, esperar... E repitir isso para cinco especialistas diferentes, por exemplo. O tempo que se demanda para atingir todos esses profissionais e tratamentos é enorme.

JC - Ao considerarmos esses desafios complexos, qual é o papel do clínico na coordenação e no cuidado integral do paciente?

MARCUS VILLANDER - O clínico liga essas especialidades, enxuga custos, direciona para o que é mais importante, elenca prioridades. E pensamos: 'agora é o momento de olhar para a saúde cardiovascular; depois, para a dor articular' - ou vice-versa. Às vezes, conseguimos fazer as coisas ao mesmo tempo. Mas, com um olhar completo, sem precisar ir a muitos médicos ao mesmo tempo. Isso economiza tempo, dinheiro e reduz o custo. O clínico contribui especialmente para pacientes multimórbidos (são aqueles que apresentam duas ou mais condições crônicas simultaneamente), e isso é ainda mais verdadeiro no hospital.

JC - E no ambiente hospitalar, como se dá essa função?

MARCUS VILLANDER - Imagine esse paciente que precisa de vários especialistas no hospital. O clínico resolve grande parte dos problemas, ouvindo opiniões quando necessário: escuta o cárdio, o neuro, o endócrino, mas conduz o paciente de forma longitudinal (acompanhamento de forma contínua e sistemático o paciente ao longo do tempo), sobretudo no internamento. Isso reduz custo, porque em vez de seis visitas diárias durante 30 dias (neuro, cárdio, endócrino, reumato, nefro…), o clínico vê o paciente todos os dias e chama cada especialista apenas quando necessário. Assim, o paciente recebe alta mais cedo, faz menos exames, com benefício clínico e financeiro.

JC - Tenho a impressão de que, no passado, havia mais médicos com essa visão integral. Quais fatores levaram à redução desse perfil na medicina atual?

MARCUS VILLANDER - Eu escutava dos meus avós sobre médicos em Salgueiro (no Sertão pernambucano), como doutor Severino e doutor Assis, que cuidavam de tudo. Essa figura foi se diluindo com a superespecialização, o que criou grandes vácuos de clínicos. Em Pernambuco, temos poucos como Dr. Chicão (que tem cerca de 65 anos só de medicina), Dr. Sérgio, Dr. Fernando, Dra. Norma… Contamos nos dedos. Nos últimos 10 anos, estamos reaquecendo a formação de clínicos, pois é insustentável depender apenas de subespecialistas. Grandes clínicos do passado mostraram o valor dessa atuação, e precisamos massificar isso para atender melhor a população.

JC - Como funciona a formação de especialistas no Brasil hoje?

MARCUS VILLANDER - Muitas especialidades (cardiologia, nefrologia, endocrinologia) exigem a Clínica Médica como pré-requisito. Porém, muitos médicos seguem para a subespecialidade e nunca mais exercem a clínica geral. No Cremepe (Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco), continuam aparecendo como especialistas em clínica médica porque têm o título, mas não atuam mais dessa forma.

JC - E fora do Brasil, o modelo é diferente?

MARCUS VILLANDER - Sim. Em Portugal e Espanha, entra-se direto na residência da especialidade. Por exemplo, cardiologia dura cinco anos: os dois primeiros na Clínica Médica e depois o restante na área específica. Ao final, o médico recebe apenas o título de cardiologista, não de clínico. No Brasil, ainda não é assim - e isso precisa ser discutido para definir o melhor modelo.

JC - No SUS, o clínico também tem um papel estratégico?

MARCUS VILLANDER - Tem sim, sem dúvida. Em até 80% dos casos, conseguimos resolver sem encaminhar para neurologista, por exemplo. Muitas queixas de memória vêm de alterações hormonais como problemas na tireoide, o que podemos corrigir na primeira consulta. Isso evita sobrecarregar ambulatórios já lotados e agiliza o cuidado. 

JC - Qual a diferença entre o clínico e o médico de família e comunidade?

MARCUS VILLANDER - O médico de família e comunidade é mais abrangente: atende crianças, faz exame ginecológico, atua na atenção primária e na comunidade. O clínico foca em adultos e atua principalmente no hospital, com visão integradora.

JC - Se o paciente não sabe o que tem, por onde deve começar a investigação clínica?

MARCUS VILLANDER - Pelo clínico. Ele faz a abordagem inicial, diagnostica, trata ou encaminha, gerenciando prioridades. Isso reduz o viés do especialista; a tendência de ver só o que domina. Assim, aumentamos a chance de diagnóstico correto e evitamos erros. 

JC - Esse movimento de retomada da Clínica Médica se concentra só em capitais?

MARCUS VILLANDER - Não. Há um movimento forte em cidades do interior, como Caruaru (Agreste) e Petrolina (Sertão). Serviços como o Hospital Mestre Vitalino, em Caruaru, têm uma clínica médica ativa.

JC - Diante desse momento tão importante para a especialidade, qual é o significado de trazer pela primeira vez o Congresso Brasileiro de Clínica Médica para o Nordeste? 

MARCUS VILLANDER - Durante o congresso, de 8 a 11 de outubro deste ano, discutiremos um tema que é muito caro a nós, médicos clínicos. Pela primeira vez, teremos uma edição do Congresso Brasileiro de Clínica Médica no Nordeste, aqui no Recife, ao longo de 35 anos da história da Sociedade Brasileira de Clínica Médica. Essa é uma oportunidade de trazer esse congresso para cá, de dividir com os nossos colegas médicos, estudantes de medicina, residentes e de outras especialidades a importância do médico clínico. Então, além de proporcionar uma atualização de várias pessoas que procuram essa especialidade, o evento também será um momento de dividir a importância da Clínica Médica para a sociedade pernambucana e brasileira.

Assista abaixo ao videocast sobre o assunto: 

 

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