"Não tive dúvida": jovem de 22 anos realiza laqueadura e reacende debate sobre autonomia reprodutiva

Gael Ribeiro, estudante de medicina, viralizou ao relatar sua escolha de não ter filhos; Decisão se tornou possível com mudança na lei

Por Isabella Moura Publicado em 08/08/2025 às 16:40 | Atualizado em 08/08/2025 às 17:16

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Em uma sociedade que ainda cobra da mulher o papel de mãe como destino obrigatório no processo da vida, tomar a decisão de não ter filhos pode ser um ato de resistência. A história de Gael Ribeiro, de 22 anos, moradora de Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, é um exemplo de como essa escolha continua sendo alvo de julgamento — mesmo quando é uma decisão pensada durante muitos anos.

Estudante de medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Gael realizou a laqueadura — cirurgia contraceptiva definitiva — na última terça-feira (5). Em entrevista ao Jornal do Commercio, ela explicou que a decisão não foi precipitada, mas resultado de quase uma década de reflexão. “O pessoal fala que com 22 foi uma decisão precipitada, que eu sou muito nova. Mas desde os 13 anos escuto os argumentos, penso nisso e nunca tive dúvida.”

Mudança na lei permitiu decisão precoce

Apesar de pensar nisso desde os seus 13 anos, Gael acreditava que nunca conseguiria realizar o procedimento. Até 2022, a laqueadura só era permitida a mulheres com pelo menos dois filhos vivos, além de exigir a autorização do cônjuge.

A mudança veio com a Lei nº 14.443, sancionada em 2022 e em vigor desde março de 2023, que reduziu a idade mínima para esterilização voluntária de 25 para 21 anos, eliminando também a necessidade de ter tido filhos e do consentimento do parceiro. Desde então, a procura pela laqueadura aumentou mais de 80% no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde.

Processo enfrentou barreiras

Apesar do direito garantido por lei, o caminho até a cirurgia não foi simples. Ela relata que, embora tenha plano de saúde, precisou ouvir o "não" de três ginecologistas, todos recusando o pedido por considerarem que era “muito nova”. “Eles não se importavam em saber da minha história. Só repetiam que 22 anos era pouco, sem considerar que essa decisão já vinha sendo pensada há quase uma década.”

Diante das recusas, ela iniciou o processo pelo SUS, onde passou pelo planejamento familiar — uma exigência legal que inclui orientações sobre métodos contraceptivos e direitos reprodutivos. Após concluir essa etapa, aguardou os 60 dias exigidos por lei para então entrar na fila do procedimento.

Mesmo com a vaga garantida, decidiu retomar o caminho particular para não ocupar o lugar de outra mulher que depende exclusivamente do sistema público. A cirurgia, então, foi feita pelo convênio.

"O corpo é mais meu do que do Estado"

Após o procedimento, Gael compartilhou sua experiência nas redes sociais. O post feito no X (antigo Twitter) ultrapassou 13 milhões de visualizações e gerou mais de 4 mil comentários, com reações divididas entre apoio e críticas.

“Teve muita gente dando parabéns, muita gente feliz, com comentários amorosos. Diziam que é melhor uma mulher ter independência do seu corpo e saber o que está fazendo, do que acabar tendo um filho e não cuidando dele direito — e isso, infelizmente, é uma realidade.”

Em meio à repercussão, Gael resumiu o sentimento de autonomia que a cirurgia lhe proporcionou.

Ela também destacou que sua decisão não interfere na vida de ninguém, e refletiu sobre o peso desigual entre maternidade e paternidade. “A paternidade nunca vai ter o peso que é a maternidade. É a mulher que carrega, que amamenta. A responsabilidade quase sempre recai sobre nós.”

Apoio da família e críticas na internet

Um dos pilares de sustentação de Gael foi o apoio da mãe, que, segundo ela, sempre esteve ao seu lado — inclusive durante o vestibular. “Quando minha mãe me apoiou nessa decisão, nada mais importava. As críticas não me afetam, porque vêm de pessoas que nunca me ajudaram, que nem mostram o rosto.”

Ela conta que, apesar dos ataques online, recebeu muitas mensagens de mulheres que se sentiram representadas. “É melhor uma mulher saber o que está fazendo com o próprio corpo do que ter um filho e não cuidar dele. Isso, sim, é uma realidade triste.”

Uma escolha consciente

REDES SOCIAIS
Trecho do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - REDES SOCIAIS

No post que viralizou, Gael citou uma frase marcante do livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

No post, muitas pessoas criticaram a escolha da frase, e Gael reconhece que o personagem é, de fato, amargo e individualista: "ele não é um exemplo para ninguém", afirma.

“A vida é minha. Eu reconheço o lado amargo do mundo — e o meu também. Não sou completamente boa, e não quero colocar outra pessoa nesse mundo que considero tão cheio de maldade.”

Laqueadura voluntária no Brasil

A laqueadura é um direito previsto na Lei nº 9.263/96, conhecida como Lei do Planejamento Familiar, que garante o acesso a métodos contraceptivos definitivos. Com a atualização da lei em 2022, o procedimento se tornou mais acessível, especialmente para mulheres a partir dos 21 anos, sem necessidade de autorização do cônjuge. A mudança representou um avanço na garantia da autonomia reprodutiva feminina.

Pelo SUS (Sistema Único de Saúde), tanto a laqueadura quanto a vasectomia são procedimentos oferecidos gratuitamente. Para iniciar o processo, é preciso procurar a Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima e apresentar documentos como RG, CPF, cartão do SUS, comprovante de residência e, se tiver filhos, a certidão de nascimento deles.

Após o início do processo, a paciente passará pelo planejamento familiar, que inclui orientações médicas, esclarecimentos sobre o procedimento e, por lei, um período mínimo de 60 dias de reflexão antes da cirurgia.

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