Estudante de odontologia quebra barreiras e desafia o preconceito contra o nanismo no Brasil
Aos 20 anos, estudante recifense com nanismo inspira inclusão na odontologia com empatia, superação e cuidado com pacientes

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O próximo 25 de outubro reúne dois marcos importantes: o dia do dentista e o dia de combate ao preconceito contra as pessoas com nanismo. Curiosamente — por coincidência ou feitura do destino —, Rebecca Canuto, de 20 anos, representa, simbolicamente, a intersecção do dia. Estudante do sexto período da graduação em odontologia, Rebecca pode ser incluída nos raros casos de pessoas com nanismo a escolher esse ofício no Brasil.
A vivência de Rebecca escancara o quanto a presença e o acolhimento podem ser um ato de transformação. Natural do Recife, Rebecca cresceu num lar familiar acolhedor, com apoio incondicional dos seus pais. Desde criança, estudou em uma escola inclusiva, ambiente no qual foi acolhida pelos colegas e nunca vivenciou o bullying, realidade incomum para muitas pessoas com acondroplasia (distúrbio genético com um padrão de herança autossômico dominante, cuja manifestação principal é o nanismo).
A estudante relata que, mesmo reconhecendo a existência de olhares indiscretos fora do ambiente escolar e familiar, isso nunca a afetou. "Na escola eu não sofria nenhum tipo de bullying, mas, fora você sofre, não verbalmente, mas com o olhar, né? Mas isso nunca me feriu. Desde sempre meus pais me ensinaram a lidar com isso e com muita terapia também".
"Eu me aceito muito bem, eu sou muito firme nas coisas, então se uma pessoa está me olhando, o problema é dela. Mas eu tenho certeza que tem outras pessoas que sofrem muito mais com isso do que eu", relata.
Cirurgia de alongamento ósseo transformou dores em autonomia
As pernas arqueadas, resultado do genu varo (deformidade física marcada pela curvatura das parte inferior das pernas para fora, em relação à coxa), causavam a Rebecca desconfortos constantes, especialmente na coluna e nos joelhos. Em 2018, aos 13 anos, junto aos pais, a estudante decidiu pela cirurgia de alongamento ósseo.
O procedimento consiste no corte de uma seção do osso, neste caso, dos braços ou pernas e no afastamento gradual das duas partes resultantes usando um equipamento chamado fixador. No espaço resultante, se formará um novo osso, alongando o membro em questão. Foram dois anos de recuperação da cirurgia, revezando-se entre a cama e a cadeira de rodas.
"Foi um um processo muito dolorido. Não é fácil você ficar em cima de uma cama, você ter que fazer os ajustes do aparelho todo dia, porque dói, porque você está esticando o osso", conta Rebecca.
"Eu nunca reclamei. Inclusive eu saía para shows, saía para tudo de cadeira de rodas, fazia tudo", relembra. A cirurgia, além de corrigir função e aliviar as dores que eram frequentes, acrescentou à sua estatura 11 centímetros.
Durante a recuperação, Rebecca conta que, com a ansiedade, convenceu o médico a retirar o fixador antes da hora. "Eu convenci meu médico a tirar o aparelho. Continuei andando, fazendo fisioterapia normalmente… e numa descarga de peso leve, fraturou o fêmur". Um novo procedimento cirúrgico foi necessário para implantar uma placa no osso e corrigir a fratura.
Escolha pela odontologia uniu paixão, desafio e representatividade
Ao aproximar-se o fim do ensino médio, Rebecca enfrentou a dúvida mais comum aos jovens: que profissão escolher? A certeza que ela sempre teve é de que seria na área da saúde. Entre as opções, fisioterapia, após enfrentar os anos de recuperação da sua cirurgia de alongamento ósseo. Mas foi após uma série de pesquisas que se apaixonou pela odontologia.
A escolha da graduação veio acompanhada da escolha pela instituição de ensino. Enquanto ainda pesquisava, Rebecca conheceu a Faculdade de Odontologia do Recife (FOR), onde estuda hoje. Na mesma data, conheceu o professor Rodolfo Scavuzzi, que a acompanha desde então.
"Rebecca é uma uma pessoa fora da curva, desde sempre muito determinada. Quando ela decidiu fazer odontologia, ela quebrou barreiras. A acondroplasia tem algumas limitações que não se tornam barreiras para ela", afirma Scavuzzi.
A chegada da estudante surpreendeu alguns dos professores da instituição, que desde o início enxergaram em suas pequenas mãos uma vantagem para realizar os tratamentos odontológicos.
Acondroplasia exige atenção especial à saúde bucal
A acondroplasia, principal causa do nanismo, é uma condição genética rara que afeta o crescimento dos ossos e cartilagens, resultando no encurtamento de braços e pernas, cabeça relativamente grande e tronco de tamanho médio. De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a incidência é de um a cada 25.000 nascidos vivos.
Além da baixa estatura, a acondroplasia também está, frequentemente, relacionada a complicações clínicas, como:
- hidrocefalia;
- compressão da junção crânio-cervical;
- respiração bucal;
- apneia do sono;
- obstrução das vias aéreas superiores;
- disfunção do ouvido médio recorrente;
- cifose toracolombar.
No campo odontológico, as complicações também aparecem, dada a influência da acondroplasia na estrutura craniofacial. O professor Rodolfo Scavuzzi, especialista em odontologia hospitalar, explica as principais características que impactam a saúde bucal.
Alterações ósseas impactam a estrutura facial e os dentes
A acondroplasia pode levar a um conjunto de características que afetam a saúde bucal e os cuidados odontológicos. Segundo Rodolfo:
- Hipoplasia de esmalte: o esmalte dos dentes pode estar enfraquecido ou diminuído, com quantidade menor que o normal;
- Apinhamento dos dentes: os dentes podem ficar fora de suas posições corretas. Rebecca, por exemplo, está usando aparelho ortodôntico por essa razão;
- Atresia de maxila e protusão mandibular: a maxila (parte superior da boca) pode ser menor do que a mandíbula (parte inferior), que por sua vez pode ser ligeiramente avantajada. Rodolfo usa uma analogia para explicar: “é como se você pegasse uma caixa e a tampa fosse menor do que a parte de baixo. E quando você vai fechar, ela não fecha direito”. Isso compromete a oclusão, ou seja, o encaixe dos dentes.
Aparelhos e cirurgias podem corrigir funções e aliviar sintomas
Diante dessas características, uma série de procedimentos pode ser necessária. Desde a odontopediatria, é importante identificar e tratar essas condições, que podem incluir o uso de aparelhos ortodônticos para reposicionar os dentes ou estimular a expansão maxilar para que a maxila seja projetada para frente e a arcada dentária tenha uma oclusão bem encaixada.
A cirurgia ortognática pode ser uma opção, mas é considerada uma das últimas alternativas devido à sua natureza invasiva. Embora seja uma correção conhecida para problemas como apneia do sono e distúrbios nas vias aéreas (comuns em pessoas com acondroplasia), a decisão de realizá-la é complexa.
Nesses casos, o atendimento deve ser multidisciplinar, envolvendo não apenas dentistas, mas também outras áreas médicas como otorrinolaringologistas, anestesiologistas e fonoaudiólogos. O cirurgião-dentista enfatiza: “é uma decisão tomada em conjunto com várias áreas, não só da odontologia, mas da própria medicina”.
Bruxismo agrava perdas ósseas e acelera deterioração dos dentes
Uma complicação relevante, especialmente para a saúde dos dentes, é o bruxismo (o ranger ou apertar dos dentes). Ele pode ser desencadeado por fatores como apneia do sono, estresse e o apinhamento dos dentes.
A advogada Kenia Rio, 60 anos, que também tem acondroplasia e é presidente da Associação Nanismo Brasil (Annabra), compartilhou sua experiência com o bruxismo, que a levou a uma perda óssea significativa e à necessidade de implantes em 80% da boca.
“Esse processo começou desde os meus 18, 19 anos. O dentista fazia o canal, o dente rachava e ele avisava que precisava extrair. Mas ele não sabia que era uma perda óssea”, relata.
Scavuzzi explica o ciclo: o bruxismo causa desgaste e fraturas nos dentes, podendo expor a polpa e exigir tratamentos de canal (endodontia). No entanto, um dente que passou por canal é um “dente desvitalizado”, ou seja, “ele deixa de receber nutrientes e se torna quebradiço”. Com o tempo e a continuidade do impacto, esses dentes enfraquecidos acabam quebrando, o que leva à necessidade de reabilitação com implantes.
Falta de preparo técnico dificulta atendimento a pessoas com nanismo
Tanto Rebecca quanto Kenia enfrentaram dificuldades para encontrar profissionais que compreendessem suas necessidades específicas. Rebecca, por exemplo, revelou que buscou diversos ortodontistas, e “um dizia que para fazer o tratamento eu precisava extrair quatro dentes, outro dizia que eu precisava extrair seis, cada um dizia uma coisa diferente”. Ela só encontrou segurança em uma profissional que apresentou um planejamento completo e menos invasivo.
Kenia também relatou uma experiência semelhante, onde um profissional chegou a extrair quatro de seus dentes. Posteriormente, ela precisou de implantes para substituir os dentes extraídos.
Consultórios acessíveis e escuta ativa fazem toda a diferença
No atendimento a pacientes com acondroplasia, alguns cuidados são cruciais, embora o princípio fundamental seja tratar o próximo como você gostaria de ser tratado, de acordo com Rodolfo Scavuzzi.
É necessário ter cuidado redobrado com o pescoço e a região cervical, pois movimentos bruscos podem gerar trauma. A cadeira odontológica, por sua vez, deve permitir que o paciente seja posicionado de forma adequada. Rebecca ressalta que, para pessoas com acondroplasia muito menores que ela, as cadeiras odontológicas padrão podem ser altas, e a possibilidade de baixá-las seria benéfica.
Rodolfo destaca que a maior barreira, muitas vezes, não é física, mas sim de mentalidade. “A grande barreira parte de cada um de nós. Eu diria que quem cria as barreiras são as pessoas. Quando você remove as barreiras que você coloca em si mesmo, o limite é o céu”.
Para casos complexos, como pacientes que são respiradores bucais, o atendimento ideal pode exigir um ambiente hospitalar, com uma abordagem multidisciplinar. O dentista precisa trabalhar em parceria com outras especialidades da odontologia e da medicina, como otorrinos, anestesiologistas e fonoaudiólogos.