Nova era em Alzheimer: o que promete o primeiro tratamento modificador da doença, por que só funciona para alguns - e o que a ciência ainda falta descobrir
No Brain Congress, neurologistas revelam como biomarcadores e novo tratamento redesenham o enfrentamento à doença - e o que ainda é preciso entender

FORTALEZA (CE) - O primeiro tratamento modificador da doença de Alzheimer aprovado no Brasil, o donanemabe, de nome comercial Kisunla, foi um dos destaques da programação do Brain Congress - evento que acontece na capital cearense e reúne especialistas nacionais e internacionais para debater descobertas das neurociências, com foco no tratamento de doenças mentais e neurológicas.
A discussão girou em torno de dois pilares principais: os biomarcadores (características biológicas mensuráveis capazes de ajudar a prever, diagnosticar e tratar doenças), que representam um avanço no diagnóstico; e o novo tratamento injetável que visa reduzir a velocidade de progressão da doença, mesmo que ainda não consigam curá-la.
"Tópicos relacionados à doença de Alzheimer têm avançado muito nas últimas décadas. Por muito tempo, era uma área vista sem grandes novidades, porque os métodos que tínhamos para estudar o cérebro não permitiam um entendimento claro da enfermidade. Hoje, com os avanços, conseguimos identificar, em vida, as proteínas que causam Alzheimer. Isso é feito através dos biomarcadores, que medem processos biológicos associados à doença", disse ao JC, durante o Brain, o neurologista Breno Barbosa, responsável pelo Ambulatório de Demências do Serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Também professor de Neurologia da UFPE, Breno ministrou uma aula que lotou um dos auditórios do Brain. Ele traçou um panorama para mostrar que estamos vivendo uma nova era de tratamentos que tentam agir sobre a biologia da doença de Alzheimer, como o donanemabe, aprovado recentemente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Donanemabe: o que faz o novo tratamento aprovado no Brasil
Desenvolvido pelo laboratório Eli Lilly, donanemabe é um medicamento injetável, administrado uma vez por mês. É o primeiro e único tratamento aprovado no Brasil direcionado a placas beta-amiloide no cérebro, um dos fatores por trás da doença neurodegenerativa.
A proteína beta-amiloide é produzida naturalmente no corpo. Na doença de Alzheimer, a proteína precursora da beta-amiloide é quebrada de forma anormal, o que gera fragementos que se aglomeram na forma de placas. O acúmulo excessivo de placas amiloides desencadeia alterações no cérebro que podem levar a déficits de cognição, memória e função associados à doença de Alzheimer.
Estudos mostraram que donanemabe promove a remoção das placas amiloides, de maneira a retardar a progressão da doença e, por consequência, a perda da cognição e memória, além das perdas funcionais decorrentes da doença.
"Ele é um anticorpo monoclonal que reduz a carga da proteína amiloide no cérebro. Não cura a doença, mas reduz a velocidade de progressão em cerca de 30% a 35%", destaca Breno.
O tratamento é voltado para adultos com doença de Alzheimer em fase inicial, que inclui pacientes com comprometimento cognitivo leve ou em estágio leve de demência. "São pessoas que ainda mantêm boa autonomia, com prejuízo apenas em atividades mais complexas."
Pacientes com doença menos avançada apresentaram os melhores resultados com donanemabe, em comparação com o placebo. Os participantes do estudo foram analisados ao longo de 18 meses em dois grupos: aqueles com menores níveis de proteína tau, o que indica um estágio de doença mais precoce, e a população em geral.
O tratamento com donanemabe retardou o declínio clínico em ambos: 35% nos pacientes com a doença menos avançada e 22% na população geral, ambos em comparação com placebo, ao serem usados parâmetros de avaliação que mede memória, pensamento e funcionamento diário.
Reações adversas e limites: o que ainda preocupa a ciência
Um ponto que levanta preocupação e requer monitoramento é o fato de donanemabe poder levar a anormalidades de imagem relacionadas à amiloide, que é um evento adverso comum da classe de terapias direcionadas à placa amiloide e geralmente são assintomáticos.
Essa é uma anormalidade que pode ser detectada pela ressonância magnética e, quando ocorre, pode se apresentar como inchaço temporário em uma área ou áreas do cérebro, o que geralmente se resolve com o tempo, ou como pequenos pontos de sangramento na superfície cerebral.
Em eventos raros, podem ocorrer áreas maiores de sangramento no cérebro. É uma anormalidade que pode ser grave - e eventos com risco à vida podem ocorrer.
Donanemabe também pode causar certos tipos de reações alérgicas, algumas das quais podem ser graves e fatais, que normalmente ocorrem durante a infusão ou dentro de 30 minutos após a infusão.
"A maioria dos pacientes não apresenta sintomas, mas alguns podem ter dor de cabeça, tontura, sonolência ou, em casos raros, convulsões. Por isso, o uso deve ser feito com supervisão em centros especializados", orienta Breno.
O neurologista relata que está otimista neste novo momento da ciência. "É uma era de grandes avanços. Ainda não temos a cura, mas esses tratamentos são um passo importante. Aprenderemos com eles e, futuramente, teremos opções mais eficazes, seguras e acessíveis."
Os avanços com biomarcadores e terapias como donanemabe são promissores, mas devem ser aplicados com critérios rígidos, aconselhamento cuidadoso e infraestrutura adequada. A Associação Brasileira de Neurologia (ABN) alerta que o uso indiscriminado pode ser prejudicial, e a responsabilidade dos profissionais é crucial.
A corrida por exames: ansiedade, esperança e desigualdades
A indicação de donanemabe se limita a pacientes que, por meio de exames, tiverem confirmada a presença de proteínas beta-amiloide no sistema nervoso.
"Os biomarcadores aumentam a precisão do diagnóstico, que antes era feito apenas com base na avaliação clínica, entrevistas e testes aplicados em consultório. Esse método acerta cerca de 70% a 80% dos casos, mas existem casos atípicos em que o biomarcador ajuda muito. Hoje temos três formas principais de medi-los: por punção lombar (líquido cérebro-espinhal), exame de sangue (ainda em validação) e exame de imagem PET com marcador para proteína amiloide, que é o mais preciso", informa Breno.
Segundo o neurologista, se o PET com marcador para proteína amiloide estiver alterado, pode-se confiar com praticamente 100% de precisão na doença já em andamento no cérebro. Porém, o desafio é que não basta o indicador estar desviado do valor normal esperado para dizer que o indivíduo tem ou não tem a doença.
"O marcador alterado apenas infere que existe uma biologia em andamento. Mas, se a pessoa tem ou não tem sintomas, se aquilo causa ou não prejuízo na vida dele, continua sendo fruto de uma avaliação clínica, de uma entrevista com médico, de entender o aspecto humano do que está em andamento ali", reforça.
É importante frisar que o teste não deve ser feito em pessoas sem sintomas de doença de Alzheimer, pois isso pode gerar angústia. "Não sabemos (só com base nos exames de biomarcadores) quando (ou se) a doença vai se manifestar, e ainda não temos um tratamento curativo. Por isso, os testes são indicados apenas em casos selecionados", diz Breno.
Entre as pessoas que podem ser encaminhadas para os exames de biomarcadores para a doença de Alzheimer, estão casos com manifestações pouco usuais que levam a dúvidas no diagnóstico. "Por exemplo: quando o início dos sintomas não é típico ou quando outras doenças precisam ser descartadas. O biomarcador pode ajudar a confirmar ou afastar Alzheimer nesses contextos."
Infelizmente são testes cujo acesso ainda é muito desigual. Eles têm custo alto e estão disponíveis apenas na rede privada ou em centros de pesquisa. O PET amiloide, por exemplo, está disponível apenas em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Já a dosagem do líquor ou do sangue é feita em alguns laboratórios específicos, mas também com limitações.
O neurologista Fernando Travassos, também presente no Brain Congress, explica que o estudo do líquor, ou líquido cefalorraquidiano (LCR), é utilizado para avaliar o líquido que envolve o sistema nervoso central e suas membranas - ou seja, cérebro, medula e meninges. "Ele é muito conhecido por seu uso no diagnóstico das meningites, mas tem várias outras indicações: pacientes com dor de cabeça atípica, com esclerose múltipla, encefalite, encefalopatia. Enfim, ele auxilia no diagnóstico de diversas doenças neurológicas", diz.
É um exame realizado na região lombar e muito seguro. "Existe muito medo popular sobre esse exame; medo de ficar sem andar, medo da dor. A gente costuma dizer que é como colher sangue, só que na região lombar: uma agulha passando pela pele."
"Só de saber o diagnóstico, já é um alívio": o impacto humano
Já tem um tempo que se fala no estudo do líquor, principalmente por causa da ansiedade das famílias em querer ter um diagnóstico diante de sintomas sugestivos de quadros demenciais.
"Antes, mesmo sem um tratamento efetivo, já existia essa necessidade de saber. Hoje, com o surgimento de novas medicações como o donanemabe, a quantidade de exames aumentou bastante. As pessoas passaram a enxergar uma perspectiva de tratamento, ou pelo menos de lentificação da piora dos sintomas", ressalta Fernando Travassos, que é coordenador da Neurologia do Hospital Pelópidas Silveira, no Curado, Zona Oeste do Recife, e preceptor de Neurologia do Hospital da Restauração (HR), no Derby, área central da cidade.
No Recife, segundo Fernando, ainda não há um laboratório que processe esse exame. "A coleta é feita na capital pernambucana, com todos os cuidados, e o material é enviado para São Paulo."
Ele informa que a procura pelo exame tem aumentado. "Há três anos, fazíamos em torno de quatro exames por semana. No último ano, passou para oito. E estamos falando de exame de líquor; não é como um exame de sangue, que são feitos milhares por dia."
Sobre a ansiedade das famílias na busca por identificar o que está por trás de sintomas sugestivos de demência, Fernando acredita que isso ocorre porque "existe um afago em ter um diagnóstico". Ele sublinha que, na neurologia, muitas doenças não têm cura – "mas, só de saber o que se tem, já é um alívio. A pessoa pode se organizar, programar a própria vida".
Mas Fernando faz questão de ressaltar que isso não se aplica a pacientes totalmente sem sintomas. "No geral, os pacientes que procuram já têm sintomas, mesmo que iniciais, ou até moderados. O exame vem como uma forma de confirmar: 'ah, então é isso mesmo', o que ajuda muito as famílias também."
Além disso, o neurologista avalia outro ponto. "Hoje não existe um tratamento curativo. Mas será que, daqui a dois anos, vai ter? Daqui a quatro? Saber o diagnóstico pode significar estar preparado para quando surgir algo novo."
Outro detalhe fundamental é ter um profissional habilitado para acompanhar bem todo esse processo. "É essencial que o resultado do exame seja interpretado por um médico. A pessoa precisa saber que condutas pode tomar a partir dali, que decisões pode tomar sobre a vida", finaliza.
*A jornalista acompanha a programação do Brain Congress a convite da organização do evento