Efeitos do 'chip da beleza' acendem alerta na saúde mental: psiquiatra liga uso a aumento de ansiedade, insônia e irritabilidade
Amaury Cantilino, palestrante do Brain Congress, chama a atenção para impactos comportamentais dos implantes hormonais usados com fins estéticos

FORTALEZA (CE) - Chamados popularmente de "chip da beleza", os implantes hormonais têm sido procurados indiscriminadamente como estratégia para emagrecimento, tratamento da menopausa, redução da gordura corporal, aumento da libido e da massa muscular. O alarmante e crescente uso desses produtos traz uma preocupação entre especialistas da endocrinologia, da ginecologia e - agora - da psiquiatria.
A utilização desses implantes com fins estéticos acende um alerta para a saúde mental. Esse é um dos temas abordados, pelo psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino, durante o Brain Congress - evento que conecta descobertas das neurociências a uma abordagem multidisciplinar, com foco no tratamento de doenças mentais e neurológicas. O congresso ocorre em Fortaleza, no Ceará, onde o JC acompanha os destaques da programação.
"Muitas vezes, sintomas como irritabilidade, insônia, ansiedade e até depressão são desencadeados ou agravados pelo uso desses implantes hormonais, e isso ainda passa despercebido por muitos profissionais", disse Amaury Cantilino, nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite*, ao falar sobre a abordagem de uma das palestras que preparou para o Brain, com foco na terapia de reposição hormonal, "chip da beleza" e adoecimento.
Natural do Crato (CE) e criado em Garanhuns, no Agreste de Pernambuco, Amaury construiu sua trajetória profissional no Recife desde os 17 anos. É mestre e doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Nesta conversa com Cinthya Leite, o psiquiatra detalha os impactos dos implantes hormonais na saúde mental das mulheres.
JC - Como o senhor associa o "chip da beleza" a impactos negativos na saúde da mulher?
AMAURY CANTILINO - É um tema bastante relevante. Em 2021, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) publicou um posicionamento sobre os implantes hormonais, que ficaram popularmente conhecidos como "chip da beleza". A entidade alertou que havia pouquíssima evidência científica que justificasse seu uso com eficácia para as terapêuticas para as quais eles se propunham. Apesar disso, o chip passou a ser prescrito amplamente, mas com um foco muito mais estético do que terapêutico. Para se ter ideia, sobre a gestrinona, que é um componente principal dos implantes hormonais, alegava-se que poderia servir para endometriose, nódulos mamários... Mas a Febrasgo considerava que essas evidências eram fracas e que não justificava comercialização no Brasil.
JC - E houve uma decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre isso, inclusive...
AMAURY - Sim! Em 18 de outubro de 2024, a Anvisa acolheu os posicionamentos tanto da ginecologia quanto da endocrinologia e proibiu o "chip da beleza". Isso gerou uma grande repercussão na imprensa e nas redes sociais, a ponto de o Senado realizar uma audiência pública no dia 28 de outubro. Alguns senadores defenderam que, mesmo com uso restrito, os implantes tinham aplicações terapêuticas e não deveriam ser totalmente proibidos. Então, em 22 de novembro, a Anvisa recuou um pouco e publicou nova resolução: manteve o uso para fins terapêuticos, mas proibiu o uso estético e a propaganda, inclusive cursos para médicos com essa finalidade.
JC - Mesmo com a proibição, muitas mulheres continuam desejando o chip, não é?
AMAURY - Exato. Muitas mulheres querem continuar usando, porque buscam os efeitos estéticos prometidos: corpo mais definido, musculatura mais responsiva ao exercício, maior queima de gordura. Isso gera um dilema ético entre a liberdade individual e a regulação sanitária.
JC - E qual é a ligação que o senhor vê com a saúde mental?
AMAURY - São duas questões. O primeiro ponto é o padrão de beleza que pressiona essas mulheres a buscarem esse tipo de intervenção. Além disso, há os próprios efeitos hormonais dos implantes que podem impactar o comportamento. Quando a Anvisa incluiu a gestrinona entre os esteroides anabolizantes, o alerta aumentou. Além da gestrinona, muitos desses implantes contêm testosterona e DHEA (dehidroepiandrosterona), que potencializam o efeito androgênico. E aí vêm os efeitos: irritabilidade, agressividade, ansiedade, sintomas depressivos e insônia, especialmente quando associados a estimulantes do sistema nervoso central, como cafeína ou pré-treinos (suplementos).
"Esses quadros psiquiátricos tendem a ser mais resistentes a tratamento", diz Amaury Cantilino
JC - Esses casos de distúrbios psiquiátricos associados ao "chip da beleza" têm aparecido com frequência nos consultórios de psiquiatria?
AMAURY - Sim, e o mais preocupante é que nem sempre os profissionais (nem quem prescreve o implante, nem o próprio psiquiatra) fazem a ligação com o uso do "chip". Muitas mulheres que nunca tiveram histórico psiquiátrico desenvolvem sintomas como insônia, ansiedade ou irritabilidade poucas semanas após realizado implante hormonal, mesmo sem nenhum evento estressor relevante.
JC - Ou seja, o psiquiatra precisa perguntar, na consulta, se a paciente está usando algum hormônio, algum implante?
AMAURY - Com certeza. Um dos objetivos da palestra foi justamente sensibilizar psiquiatras e psicólogos a fazerem essa pergunta quando o quadro não se encaixa ou surge sem causa aparente. Às vezes, a paciente tinha um transtorno de pânico ou depressão bem controlado, e depois do implante, o quadro desestabiliza. É preciso investigar se há uso recente de hormônios.
"A paciente faz o implante e, em poucas semanas, podem surgir insônia, irritabilidade, ansiedade", alerta Amaury Cantilino
JC - Há também muito marketing e pouca ciência quando trazemos esse tema à tona, concorda?
AMAURY - Exato. E a divulgação é muito intensa, inclusive com médicos promovendo o "chip" no Instagram, sem base científica sólida. Isso torna ainda mais importante que a saúde mental entre na discussão.
JC - Por que o senhor decidiu trazer o tema para esta edição do Brain Congress?
AMAURY - Na verdade, foi uma sugestão da própria programação científica do Brain. Eles queriam que esse tema fosse debatido e me convidaram para essa missão. Achei superinteressante e fui estudar bastante. Trouxe elementos que considero úteis para a prática clínica.
JC - No dia a dia do consultório, o senhor tem atendido mais mulheres que fazem uso do implante?
AMAURY - Com muita frequência. Quando a gente passa a perguntar, descobre que o uso é muito mais disseminado do que parece. E os efeitos colaterais psiquiátricos muitas vezes são ignorados — tanto por quem prescreve quanto pelas próprias pacientes. Elas não associam os sintomas ao implante, mesmo que o início tenha sido logo após a aplicação.
JC - Esses implantes precisam ser feitos com frequência? E quanto tempo os efeitos permanecem?
AMAURY - Essa é uma das maiores limitações. Com medicamentos convencionais, a gente tem estudos sobre farmacocinética - absorção, metabolismo, eliminação... Com os implantes, isso não existe. São manipulados, e não sabemos com precisão quanto tempo a pessoa fica exposta àquela substância. Dizem que precisa repor a cada seis meses ou um ano... Mas, o que acontece depois disso? Além disso, há riscos em caso de gravidez. A exposição a hormônios androgênicos na gestação pode afetar o desenvolvimento do bebê, com impactos na linguagem, empatia, contato visual... Inclusive, há hipóteses de que níveis elevados de andrógenos na gestação possam estar ligados ao aumento de casos de transtorno do espectro autista.
JC - E é possível tratar esses efeitos, como insônia ou irritabilidade, com medicamentos psiquiátricos convencionais?
AMAURY - É mais difícil. São quadros mais resistentes. A insônia, por exemplo, tende a não responder bem aos tratamentos usuais. A irritabilidade gera dúvidas diagnósticas e também desafios terapêuticos. Como não há guidelines específicos (diretrizes clínicas formais e baseadas em evidências científicas), muitas vezes a solução seria remover o implante, o que nem sempre a paciente aceita, porque está em busca do resultado estético.
JC - E aí entra a discussão sobre o padrão de beleza.
AMAURY - Exatamente. É importante conversar sobre isso. Até que ponto vale a pena sacrificar saúde emocional em nome de um corpo idealizado? O padrão de beleza muda ao longo do tempo, mas a cobrança sobre o corpo feminino continua. Eu digo: "Quando a beleza vira um fardo, o corpo já não é abrigo, mas campo de batalha".
JC - Frase sua?
AMAURY - Sim. Tenho dito que talvez a verdadeira revolução estética seja recuperar o direito ao próprio ritmo, ao próprio corpo e ao próprio critério. Aceitar o corpo como ele é - o rosto, o cabelo, as curvas... Isso é uma forma poderosa de liberdade.
*A jornalista acompanha a programação a convite da organização do Brain Congress