Embrapa ajudou a entender semiárido e modernizar agricultura para exportação
Empresa, criada no regime militar, possui oito unidades na região e entregou pesquisas importantes na agricultura de sequeiro e também na irrigada
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Nos últimos anos, quando o Brasil virou potência agrícola de classe mundial e passou a liderar a produção de pelo menos cinco das 10 principais commodities, além de estar presente entre os 10 maiores produtores de dezenas de culturas agrícolas, a marca de Embrapa passou a estar associada como suporte técnico e científico dessas novas faces do setor rural brasileiro.
De fato, o nome Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), uma empresa criada nos tempos do regime militar pelo então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, se tornou tão importante que rigorosamente nenhuma cultura de sucesso produzida no Brasil não tem o selo da empresa, que virou referência internacional pelo conhecimento aplicado que produziu e nos levou ao que somos hoje na soja, milho, algodão, carne e dezenas de culturas.
E ela já nasceu com focos bem definidos a partir de suas primeiras unidades. Em 1974, foram criados os primeiros centros nacionais por produtos: Trigo (em Passo Fundo, RS) , Arroz e Feijão (em Goiânia, GO), Gado de Corte (em Campo Grande, MS) e Seringueira (em Manaus, AM).
Mas o que pouca gente percebe é que para regiões como o Nordeste, ela tem sido ainda mais essencial pelo que, em mais de 50 anos, agregou de conhecimento. Seja para o desenvolvimento de sistemas de produção e convivência com a seca no Semiárido; seja pelo que entregou no desenvolvimento de culturas irrigadas que levaram o Brasil a liderar, também, a exportação de frutas; seja pela modernização de culturas tradicionais adaptadas ao clima da Região igualmente potencializadas comercialmente; seja pela introdução de cultivares que não faziam parte do seu ecossistema.
Todo esse conhecimento sistematizado veio de uma cultura empresarial criada dentro da Embrapa, que visa aplicar o conhecimento científico gerado na pesquisa no campo visando dar ao produtor mais renda e competitividade. E desse conhecimento, ser um veículo do agronegócio acessível do pequeno ao mega produtor em todas as regiões, trazendo os avanços da pesquisa para o negócio rural.
Pesquisa na agricultura de sequeiro e na irrigada
E no Nordeste, onde a empresa está desde o início de sua criação e mantém oito unidades, esse comportamento não foi diferente. Especialmente relacionada ao que entregou na chamada agricultura de sequeiro, seja na irrigada pelo aproveitamento dos reservatórios construídos no século XX, e dos rios da região onde o São Francisco se tornou icônico para o negócio rural.
E esse conceito de atenção com a água no Nordeste está na criação da Embrapa Semiárido, criada em março de 1975, em Petrolina-PE, que já nasceu focada na pesquisa e inovação para o desenvolvimento sustentável das áreas semiáridas do Brasil, já que o bioma abrange 12% do território nacional e engloba municípios em todos os estados do Nordeste e parte de Minas Gerais e Espírito Santo.
A Embrapa Semiárido nasceu com o nome de Centro de Pesquisas do Trópico Semiárido (CPATSA), mas a seguir, incorporou a denominação padrão da empresa, tendo se tornado referência no desenvolvimento da pesquisa no bioma caatinga, que se estende por 860 mil quilômetros quadrados do Brasil.
Caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, localizado no Nordeste, com clima semiárido caracterizado por altas temperaturas e poucas chuvas, onde existe uma biodiversidade notável que abrange uma variedade de espécies, muitas delas endêmicas.
Mas ela carrega uma grande diversidade que vai de mamíferos, fauna, avifauna, anfíbios e uma variedade de insetos essenciais para a manutenção do ecossistema, como as abelhas e formigas, que desempenham um papel vital na polinização e dispersão de sementes.
A pesquisa da Embrapa trabalhou com frutas como a mangabeira, uma árvore frutífera rústica de clima tropical, nativa dos tabuleiros, restingas e cerrados do Brasil; a pitangueira, outra fruteira nativa do Brasil e que encontra-se disseminada, praticamente, por todo o território nacional, e o maracujá, que hoje tem grande importância comercial devido aos vários produtos como os destinados à indústria alimentícia e farmacêutica, além de ornamental.
Olhar científico para o semiárido
E foi a Embrapa quem primeiro teve um olhar científico para o bioma, contribuindo para a sistematização do conhecimento ancestral que existe ali, especialmente do banco de genes que vem sendo coletado há décadas.
O diretor executivo da Embrapa, José Geraldo Eugênio de França, e o atual presidente do Comitê Assessor Externo da Embrapa Instrumentação Agropecuária (CAE), o pernambucano Geraldo Eugênio, chamam a atenção para o conhecimento que existe na Embrapa sobre o bioma caatinga, quando se olha em perspectiva para as mudanças radicais que o Brasil está enfrentando e que vão exigir novos olhares.
Se pensarmos que essas mudanças serão o novo cenário climático, pergunta Eugênio: Onde é que podemos ir buscar os genes que vão ajudar essa nova agricultura de escala global a se adaptar a essa nova realidade?
Certamente, na Caatinga, que é um bioma que aprendeu a conviver com altas temperaturas. E esse conhecimento, a Embrapa vai poder incorporar as demais culturas alimentares que o Brasil produz com pesquisa genética.
As afirmações de Eugênio fazem sentido diante do nível de mudanças climáticas que o agronegócio brasileiro enfrenta, e talvez os avanços em genética que a própria Embrapa ajudou a tornar disponíveis e em algum momento, terão que ser revisitados.
De fato, talvez a grande contribuição da Embrapa para o Nordeste tenha sido o de olhar para o Semiárido como um espaço de produção e se preocupar com ele. Daí é que vem o conhecimento do manejo da água para tornar viável todo o potencial de fruticultura e demais produtos com incorporação de novas cultivares e viabilizar a pecuária sustentável dentro desse território.
Entrega de uvas sem caroço adaptadas ao clima nordestino
Um desses exemplos é o da pesquisa da Embrapa Semiárido, que tem investido em uvas sem caroço adaptadas ao clima nordestino, com destaque para a BRS Melodia (rosada) e a BRS Lumiar (branca) que podem produzir até duas safras por ano, têm alta produtividade (cerca de 50 t/ha/ano).
Sistematização do conhecimento ancestral da mandioca
Geraldo Eugênio lembra que foi a Embrapa quem pesquisou de modo profundo a mandioca, e sistematizou o conhecimento ancestral da planta, detendo hoje um banco de mais de 300 genes que sustentam a evolução das culturas, inclusive, em função das alterações climáticas que estão se tornando permanentes.
Quando esteve na empresa, Geraldo Eugênio patrocinou a edição e social do livro "Mandioca - O pão do Brasil", que mostra a contribuição da mandioca para a alimentação dos povos nativos aos dias atuais, especialmente como matéria-prima industrial.
A chefe da Embrapa Semiárido, Lúcia Helena Piedade Kiill, com sede em Petrolina (PE), corrobora a avaliação de Eugênio ao dizer que a unidade, em 50 anos, construiu uma base sólida de pesquisa, que vem permitindo produzir com eficiência e sustentabilidade mesmo em ambientes com forte restrição hídrica.
"Essas tecnologias têm apoiado desde pequenos produtores até grandes empreendimentos agropecuários, sempre com foco na valorização dos recursos locais e na sustentabilidade dos sistemas produtivos. O que a tornou uma referência nacional e internacional na geração de conhecimentos e tecnologias voltadas à convivência produtiva com as condições climáticas da Região", afirma Lúcia Kiill.
O chefe da Embrapa Tropical, com sede em Fortaleza (CE), Gustavo Adolfo Saavedra Pinto, concorda com esse papel de articulação da empresa e lembra que sua grande contribuição foi provar que a agricultura brasileira era viável e capaz de diminuir nossa importação de alimentos. Além disso, ao criar centros de pesquisa em todos os biomas, em todas as regiões do país, permite um olhar específico dessas regiões.
Pesquisa ajudou na modernização da cultura do caju
O caso do Semiárido é um bom exemplo, diz Saavedra Pinto. Quando se olham outros biomas, outros modelos de agricultura em outras regiões que se desenvolveram mais rápido com tecnologias que transformaram o Brasil numa potência agrícola, está o DNA da Embrapa.
"E eu acho que esse olhar acabou trazendo um foco na preservação maior para o problema que está presente em cada região. Então, o resultado foram soluções adaptadas e desenvolvidas para outros biomas usando esse conhecimento", afirma Saavedra Pinto.
Lúcia Kiill lembra que a articulação entre as unidades na Região tem sido decisiva para fortalecer cadeias produtivas estratégicas - como a fruticultura irrigada, a caprinovinocultura e a produção de alimentos adaptados às condições semiáridas - e para levar o conhecimento científico à prática no campo.
E ela concorda com o alerta de dezenas de cientistas sobre o impacto que as mudanças climáticas colocam a agricultura mundial diante de desafios completamente novos. E que o Brasil, apesar do sucesso do seu agronegócio, não está fora desse cenário.
Ciência nas respostas rápidas às mudanças do clima
Ela acredita que nesses momentos a pesquisa agropecuária se torna decisiva. Quando a ciência precisa oferecer respostas rápidas e práticas para que os produtores consigam se adaptar. Isso inclui desde o manejo da água até o desenvolvimento de novas variedades mais resistentes e a diversificação das formas de produção.
No caso do Nordeste, especialmente do Semiárido, diz Lúcia Kiill, há um papel estratégico muito claro. "A Embrapa tem uma longa trajetória na Região e já mostrou que é possível produzir com sustentabilidade mesmo em condições adversas. O conhecimento acumulado aqui sobre convivência com a seca, uso eficiente da irrigação e manejo integrado dos recursos naturais é cada vez mais valioso. E não só para o Brasil, mas também para outras partes do mundo que começam a enfrentar problemas parecidos ", diz.
Saavedra Pinto lembra uma questão bem interessante sobre como o Brasil vê o Nordeste. "Às vezes o imaginário popular diz que a Região é 100% seca ou que tem belas praias. Sem lembrar dos perímetros irrigados nordestinos que trouxeram uma nova referência em termos de produtividade. É quando eu costumo lembrar que agricultura se faz com o desenvolvimento das cultivares nos seus biomas".
"Então a contribuição das unidades da Embrapa no Nordeste é que trabalharam com desenvolvimentos culturais com foco. Fortaleza desenvolveu o cultivo do caju Meio Norte para feijão. Semiárido com agricultura irrigada".
A Embrapa tem um forte trabalho no cajueiro tropical. Suas contribuições incluem o desenvolvimento de clones mais produtivos e resistentes, como o cajueiro-anão, tecnologias para o cultivo em ambientes semiáridos e soluções para processamento industrial de produtos como a castanha, suco concentrado, cajuína e a fibra de caju.
"E fez isso para pequenos produtores, médios e grandes produtores. Não cabe à Embrapa definir que classe produtiva vai usar. Nós sempre estamos falando com pessoas muito diferentes", afirma Saavedra Pinto, que chama a atenção para a questão da água.
Semiárido tem bons solos e concentração grande das chuvas
De fato, o Semiárido traz desafios maiores do que os de outros biomas e a questão da menor precipitação é uma característica de solos e da concentração às vezes muito grande das chuvas em curto espaço de tempo, que acabaram fazendo com que os cientistas passassem a olhar com mais profundidade.
"Então, após 50 anos, você vê que outros biomas, a agricultura em outras regiões se desenvolveu mais rápido com tecnologias. Mas o Semiárido continua sendo estratégico em nível nacional e internacional", esclarece Saavedra Pinto.
Para Lúcia Kiill, ao longo de mais de 50 anos, a Embrapa tem buscado antecipar desafios e entregar soluções baseadas em ciência. No caso das mudanças climáticas, isso significa fazer pesquisa voltada à adaptação e à mitigação dos impactos no campo, apoiando políticas públicas, capacitando produtores e estimulando a inovação tecnológica.
Ela concorda com Geraldo Eugênio quando afirma que o patrimônio genético conservado e estudado pela Embrapa é um dos maiores ativos estratégicos do país frente aos desafios das mudanças climáticas, e que esse banco de genes que as unidades do Nordeste acumularam podem ser determinantes.
Banco de germoplasma é ativo para mudanças climáticas
O banco de germoplasma das Unidades do Nordeste, ao qual a Embrapa Semiárido contribui de forma significativa, representa uma verdadeira biblioteca de biodiversidade adaptada a condições de alta temperatura, escassez hídrica e solos de baixa fertilidade — características cada vez mais presentes em diferentes regiões do país e do mundo, diz a chefe da unidade sediada em Petrolina.
"Essa base genética é essencial para o futuro da agricultura, pois fornece os recursos necessários para o desenvolvimento de novas variedades e sistemas produtivos mais resilientes, capazes de sustentar a produtividade e a segurança alimentar em cenários climáticos extremos", afirma Lúcia Kiill.
Sua percepção faz sentido. Hoje, a Embrapa Semiárido mantém um acervo de recursos genéticos que reúne espécies nativas e cultivadas de origem vegetal, como manga, uva, acerola, capim-buffel e umbu — animal, com destaque para o gado da raça Sindi, além de microrganismos, como fungos e bactérias.
E todos esses materiais apresentam elevado potencial de uso na agricultura, na alimentação e na recuperação de ecossistemas, configurando-se como um patrimônio científico e tecnológico de referência para o Brasil e para outras regiões do mundo com condições ambientais semelhantes.
Um desses produtos é a manga Palmer, uma das variedades mais exportadas, especialmente para mercados como a União Europeia, Estados Unidos e Espanha. A Embrapa Semiárido, em parceria com instituições locais, trabalha numa linha para reduzir em até 31% o consumo de água na irrigação controlando com precisão todas as fases do cultivo, desde a poda e indução floral até a maturação dos frutos.
Para um mundo com um clima em aquecimento, isso representa muito mais do que uma reserva de biodiversidade: é uma fonte estratégica de soluções para a agricultura do futuro. Uma ferramenta de soberania, de segurança alimentar e de fortalecimento da capacidade do Brasil de liderar uma nova agricultura, mais adaptada, inclusiva e resiliente diante das mudanças climáticas globais.