O teatro político que mascara a falta de estratégia contra o crime
O país se perde em debates vazios sobre rótulos e anos de cadeia enquanto ignora a estrutura que permite às facções se expandirem.
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Os debates em Brasília sobre segurança pública caminham cada vez mais para o terreno das aparências eleitorais. A aprovação do projeto antifacção na Câmara, celebrada como se fosse uma solução definitiva para o crime organizado, foi mais um capítulo dessa coreografia política que tenta apresentar respostas rápidas para um problema que exige estrutura, investimento e continuidade.
Mas tudo o que foi entregue até agora são só pequenos destaques para as redes sociais dos políticos, quase todos candidatos em 2026.
O entusiasmo que tomou conta da votação, com mais de 300 votos favoráveis e a narrativa de que a lei "enfrentará a violência", serve mais ao clima político do que à realidade concreta das ruas.
O texto aprovado, que ainda deve ser modificado no Senado, não resolve nada. É conversa para bobo votar.
Enxugar gelo
O projeto se sustenta quase todo em aumento de penas e tipificação com maior sentido de violência nos crimes. A pena máxima de 20 anos dobra para 40 nos casos em que se estiver julgando alguém ligado às agora chamadas "organizações criminosas ultraviolentas".
Acreditar que isso resolve é como acreditar que o criminoso estivesse fazendo cálculos cuidadosos sobre a diferença entre passar duas ou quatro décadas preso. Quem pensa nisso é quem não comete crime.
Quem teme a cadeia é o cidadão honesto, não o sujeito inserido no cotidiano do crime. O criminoso vive tentando evitar a prisão, trabalha para não ser pego nunca. Quem defende aumento de penas, simplesmente, acredita que o bandido antes de matar, roubar ou estuprar pega um caderninho e vai calcular quantos anos fica preso caso seja condenado e pode desistir de cometer o crime por causa disso. É uma estupidez.
A estratégia de aumentar penas não altera o comportamento de quem está no crime porque não toca na engrenagem que mantém as facções vivas. E essa engrenagem se alimenta das falhas do Poder Público, não do medo de prisão.
Raiz do problema
O que derruba a criminalidade é capacidade de Estado. É integração entre polícias. É investimento que ultrapasse governos e agendas partidárias.
O exemplo recente do Rio de Janeiro evidencia isso. A megaoperação que terminou com mais de 120 mortos e quatro policiais mortos não mudou a estrutura criminal do território. Os mortos do crime são descartáveis também para as facções. Matá-los para resolver o problema é como tentar esvaziar um rio retirando dele um balde de água por dia.
Ainda que todos os mortos sejam criminosos, o efeito prático se resume a um abalo momentâneo. No dia seguinte, o fuzil passa para outra mão. As facções tratam seus soldados como peças substituíveis. O que não é substituível é o fluxo de armas e drogas que chega às cidades. E contra isso o Poder Público não atua com metade da seriedade que usa para discutir as ideias "instagramáveis" do Congresso.
Fronteira aberta
Esse é o ponto negligenciado pelo debate político. O país até possui um projeto de monitoramento de fronteiras, por exemplo.
O Sisfron é o caso mais emblemático. O sistema de monitoramento das fronteiras, tocado pelo Exército Brasileiro, nasceu em 2012 com a promessa de mapeamento integrado de toda a faixa terrestre brasileira em seus mais de 17 mil km. A implantação já passou por quatro presidentes sem ganhar a robustez necessária. porque a União não destina as verbas previstas para sua conclusão. Era para estar pronto em 2021. Hoje a expectativa é terminar em 2039, exatos 18 anos após o prazo inicial.
Atraso desse tamanho não é falta de tecnologia. É falta de prioridade. É o efeito de governos que, ao longo de uma década, decidiram não investir o que o projeto exigia. O Sisfron era orçado em R$ 15 bilhões, mas só foram investidos R$ 3 bilhões em 13 anos.
Apenas como comparação, somente em 2025 a fatia do orçamento destinada às emendas parlamentares foi de R$ 50 bilhões. Esse dinheiro que é separado para os parlamentares destinarem às suas bases políticas em apenas um ano daria para implementar o Sisfron inteiro três vezes. E ainda sobrariam R$ 5 bilhões de troco.
Tem dinheiro para resolver o problema. Mas ninguém quer abrir mão de distribuir verba com seus aliados políticos locais para blindar as fronteiras de armas e drogas. É mais fácil gritar frases de efeito na tribuna da Câmara e postar no Instagram.
E a realidade é que sem fronteira controlada não há legislação que enfraqueça facção.
Teatro em Brasília
Enquanto isso, a discussão política se concentra em disputas que não transformam a realidade. Discute-se quem fica com os bens apreendidos. Discute-se se a definição de facção deve carregar rótulos mais duros. Discute-se quantos anos de pena produzirão mais ou menos engajamento.
Nada disso altera a economia do crime. São temas que alimentam redes sociais e ocupam manchetes, mas ficam a quilômetros de distância do que realmente poderia mudar o mapa da violência.
Caminho possível
Enfrentar facções de forma consistente exige romper o ciclo de improviso. Exige coordenação nacional. Exige que o Ministério da Justiça e os governos estaduais assumam que segurança pública é política de Estado e não de temporada. Exige controle de portos, aeroportos e fronteiras. Exige continuidade em projetos como o Sisfron.
O futuro que conta
A aprovação do projeto antifacção revela mais sobre o comportamento da política do que sobre o enfrentamento ao crime. O Legislativo e o Executivo escolheram o caminho da facilidade. O país escolheu mais uma vez discutir a superfície.
Enquanto isso, as organizações criminosas seguem abastecidas e operando com velocidade maior do que a capacidade estatal de responder.
Há caminhos possíveis para combater o crime organizado e acabar com as facções criminosas, mas nenhum deles passa por soluções mágicas. E é aí que vive o problema.
Abrir mão da "mágica" é difícil num país com eleitores pouco instruídos que votam mais por impulso do que por raciocínio. Imagine isso faltando menos de um ano para a eleição.