Quando a inclusão social vira privilégio e gera insegurança jurídica
Exclusividade para assentados desafia a Lei de Cotas e abre brecha para críticas sobre privilégio e seletividade do governo com movimentos sociais.

Clique aqui e escute a matéria
O caso da criação de uma turma de Medicina exclusiva para moradores de assentamentos rurais, pela Universidade Federal de Pernambuco, envolve muito mais do que uma simples política acadêmica e precisa ser analisado como parte integrante de um debate sobre uso de recursos públicos e seu direcionamento, num momento em que se fala tanto da falta de recursos até para o básico dentro das instituições federais.
O caso expõe contradições sobre a autonomia universitária e os limites impostos pelos princípios da administração pública, por exemplo. A pressa no edital, o critério restritivo de seleção e a associação com o MST, que é maioria dentro dos assentamentos rurais, colocaram a iniciativa no centro de uma polêmica nacional. Não sem razão.
É verdade que a universidade possui autonomia para criar cursos e turmas. Ninguém questiona isso. Esse direito é reconhecido e deve ser respeitado. Mas, por se tratar de uma instituição pública federal, as decisões também precisam obedecer aos princípios constitucionais. Nesse caso, dois deles podem ter sido diretamente colocados em xeque, publicidade e impessoalidade.
Problema da publicidade
O edital que abriu as 80 novas vagas foi publicado em 10 de setembro, com prazo de inscrições encerrado já no dia 20. Apenas dez dias, incluindo finais de semana, foram oferecidos para a divulgação e conhecimento de toda a comunidade.
Só quem estava dentro das redes dos assentamentos soube a tempo de se inscrever. A maioria da população sequer teve conhecimento do processo, o que levanta muitas dúvidas sobre a real intenção da universidade ao adotar esse calendário apertado, embora o reitor da UFPE, numa entrevista ao Passando a Limpo, na Rádio Jornal, tenha afirmado que o tempo curto se deveu ao apertado calendário acadêmico, o fato é que o tempo foi muito curto.
Para ter uma ideia, a lei determina que o prazo entre a publicação do edital e a realização das provas, em um concurso público comum, precisa ser de, no mínimo, quatro meses. A seleção para a turma de medicina da UFP Campus Agreste não é um concurso público comum, mas a necessidade de atender ao princípio de publicidade é a mesma.
Impessoalidade questionada
O segundo ponto problemático está na restrição do público. As vagas foram reservadas exclusivamente para moradores de assentamentos rurais, o que na prática exclui cidadãos que também vivem na zona rural, pagam impostos e cumprem seus deveres, mas não fazem parte dessas áreas tão específicas.
Não há previsão legal que ampare tal critério. A Lei de Cotas de 2012 garante vagas a estudantes de escolas públicas, com critérios de renda e etnia, mas em nenhum momento fala em assentamentos rurais como grupo prioritário.
No momento em que se criam 80 novas vagas, para um curso que tinha outras 80, mas só há permissão de acesso para um grupo específico que não está na lei, é como se a UFPE estivesse arranjando uma maneira criativa de ampliar a lei de cotas ao entendimento privado da instituição, sem precisar passar pelo Poder Legislativo.
Universalização
Outra questão muito séria é que o papel da universidade pública deveria ser o de promover ações que ampliem o acesso geral da população aos seus cursos, com os quais o dinheiro do contribuinte é utilizado em grande volume, em contraponto à proliferação de cursos particulares que nem sempre oferecem a estrutura devida para uma formação adequada, mas cobram mensalidades altíssimas.
A Lei de Cotas já limita o acesso do público que não estudou em escola pública e não se encaixa em critérios de renda e etnia. Ela é justa, apenas porque o número de vagas públicas é pequeno e a prioridade tem que ser dada aos que não podem pagar.
Mas quando a universidade é capaz de dobrar o número da vagas e, ainda assim, restringe o acesso escolhendo grupos específicos, ausentes na legislação, para ocupar essas vagas, enfraquece a própria Lei de Cotas e pega a contramão da universalização. É a negação de um dos papéis mais importantes da universidade pública.
Com 80 vagas, os estudantes que não se encaixam em nenhum cota teriam 40 vagas para disputar, o que equivalia a 50% do total. Com a ampliação, foram usados recursos públicos para criar uma nova turma com mais 80 vagas, mas quem não está em cotas ou não mora em assentamentos rurais, segue tendo 40 vagas disponíveis que, agora, dizem respeito a 25% do total. Isso é universalização?
Seleção frágil
Outro fator de polêmica é a forma de ingresso para esta turma específica para quem vive em assentamentos rurais. Não há prova objetiva. O processo se limita a uma redação e à análise do histórico escolar. Basta comprovar residência em assentamento rural e ter um bom desempenho escolar para conquistar uma vaga em Medicina, curso que tradicionalmente é um dos mais concorridos do país.
Não por acaso, entidades médicas como SIMEPE, CREMEPE e a Associação Médica se manifestaram contra a medida. Parlamentares também entraram no debate, chamando atenção para os riscos de um modelo seletivo que fere a lógica da impessoalidade e pode gerar privilégios injustificados.
Experiência anterior
Não é a primeira vez que uma iniciativa semelhante é tentada no Brasil. Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, a ideia foi abandonada após forte repercussão negativa. Lá, como em Pernambuco, o vínculo com o MST pesou na rejeição ao projeto.
A diferença é que os responsáveis decidiram avançar, ainda que de forma acelerada e sem a ampla divulgação necessária quando ela deveria ter sido feita.
Questões finais
Dito tudo isso, é importante fazer um questionamento sobre o acesso também de outros grupos. Afinal, se o objetivo é integrar à universidade pessoas que têm dificuldade no acesso em setores que precisam de médicos e não conseguem vê-los formados, como nas comunidades rurais, por que a turma não é aberta para todos os moradores de zona rural em Pernambuco?
Por que o "filho de dona Francisca", que se mata trabalhando debaixo do sol de domingo a domingo na zona rural, mas não está dentro de um assentamento, ficou impedido de participar?
O pecado de "Dona Francisca" e do filho dela é não estarem filiados ao MST ou a outro grupo de assentados?