Cena Política | Análise

O pacto de autoproteção que une centrão e bolsonaristas no Congresso

O pacto de blindagem revela o Brasil dos privilégios: políticos criticam o sistema até que passem a desfrutar dele dentro do poder.

Por Igor Maciel Publicado em 28/08/2025 às 20:00

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No disco "Estudando o Samba", de 1976, Tom Zé canta assim: "Eu tô te explicando/ Pra te confundir/ Eu tô te confundindo/ Pra te esclarecer/ Tô iluminado/ Pra poder cegar/ Tô ficando cego/ Pra poder guiar”. O trecho é da música "Tô". E poderia ser cantada em coro na abertura de cada sessão do Congresso Nacional.

Imaginem os 513 deputados, engravatados, olhar no horizonte, peito inflado para cantar esses versos. Seria uma imagem linda e, é preciso dizer, condizente com a realidade.

A chamada PEC da Blindagem, em discussão no Congresso Nacional, escancara uma tentativa do Congresso de se proteger do alcance da Justiça. O discurso é de preservação institucional, mas o conteúdo revela a busca por privilégios. Ao propor mudanças profundas nas regras de responsabilização, deputados e senadores sinalizam que não querem ser tratados como cidadãos comuns.

E como tudo o que eles fazem, as discussões dos últimos dias são iluminadas para cegar e explicadas para confundir.

Funcionamento

O texto prevê que prisões e processos contra parlamentares só poderão ocorrer com autorização prévia da Câmara ou do Senado. Mais do que isso, decisões do Supremo Tribunal Federal precisariam de dois terços dos votos para que alguém fosse processado ou preso, impondo uma barreira quase intransponível.

A Justiça, mesmo em situações graves, teria de pedir licença ao Congresso para agir. O absurdo se completa ao proibir o STF de rever decisões do Legislativo quando este suspender investigações ou processos, criando um cenário em que os parlamentares controlam a sua própria punição e garantem que o poder político e não a justiça seja considerada na hora de apurar qualquer desrespeito à lei.

Consequências

O efeito direto é transformar crimes em disputas de grupos partidários. Não será a gravidade do delito que definirá uma prisão ou processo, mas a quantidade de aliados que alguém reunir no Parlamento. Um deputado envolvido em assassinato só poderia ser processado com aval do Congresso, salvo se fosse pego em flagrante.

Essa lógica institucionaliza a blindagem e praticamente elimina a responsabilização, minando a ideia de igualdade perante a lei. O Supremo, por sua vez, perderia qualquer capacidade de controle sobre esses atos.

Exemplos

A prática atual já mostra a dificuldade do Congresso em lidar com situações graves. O caso do assassinato de Marielle Franco, até hoje em meio a disputas políticas sobre perda de mandato de envolvidos, é sintomático. Outro exemplo é o de Carla Zambelli, cuja condenação não levou à cassação ainda, justamente porque o jogo de forças prevalece sobre a Justiça.

Imagine esse mesmo cenário depois de uma mudança constitucional que transforma a blindagem em regra.

Impacto institucional

A proposta não apenas atinge a relação entre Legislativo e Judiciário, mas mexe nas regras internas do próprio Supremo. Ministros já reagiram nos bastidores, alegando que a medida compromete a separação dos Poderes.

Mesmo diante da resistência, a PEC avança porque atende ao interesse direto de quem tem poder para aprová-la: principalmente o centrão e os bolsonaristas que, unidos, são a grande maioria do Legislativo. Não só isso, são também os maiores interessados em se proteger da Justiça.

É uma inversão de papéis que coloca o Congresso no topo da hierarquia estatal, imune a freios e contrapesos.

Apoio político

A junção desses dois grupos, centrão e bolsonaristas, que se confundem bastante desde a pandemia, explica muito sobre a evolução recente da política brasileira.

Antes defensores da punição a qualquer custo, os bolsonaristas agora marcham ao lado dos que sempre se beneficiaram das brechas do sistema e dos espaços mais lucrativos do poder.

O centrão, por sua vez, encontra na PEC a oportunidade de tentar consolidar um controle político sobre a Justiça e se proteger contra avanços que assustaram nos últimos dias, principalmente de Flávio Dino que começou a questionar os gastos das emendas parlamentares e processar desvios de dinheiro do pagador de impostos.

Evolução do bolsonarismo

O bolsonarismo, isso é curioso, nasceu com um discurso radical contra a corrupção, prometendo Justiça implacável. Mas, quando o governo de Jair Bolsonaro ficou ameaçado pelo risco de impeachment durante a pandemia, a aliança com o centrão foi a moeda de sobrevivência.

A partir dali, o discurso anticorrupção foi cedendo espaço à prática da autoproteção. Hoje, a defesa da blindagem é a prova de que o movimento adotou integralmente os vícios da velha política.

Cego pra guiar

A PEC da Blindagem é o retrato de um Brasil de privilégios. Critica-se o sistema até conquistar acesso a ele. Uma vez dentro, passa-se a defender os mesmos privilégios como se fossem naturais. Essa inversão corrói a confiança nas instituições e transforma a política em um pacto de autoproteção.

Ao vedar que a Justiça revise decisões do Congresso, a proposta não apenas ameaça a separação dos Poderes. Ela consagra a impunidade como regra. Igual ao que era antes de mensalões, petrolões e operações Lava Jato.

Os bolsonaristas e o centrão se juntam por blindagem, para ficar acima das leis, e os petistas fingem reclamar, mas também serão beneficiados. É o "ficar cego para poder guiar", da música que precisa virar hino do Congresso o mais rápido possível.

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