Cena Política | Análise

Os carroceiros do Recife e a covardia institucional para fazer o certo

A lei que proíbe a tração animal foi aprovada em 2013, mas só em 2026 será efetivada, reflexo da omissão do poder público preocupado com eleições.

Por Igor Maciel Publicado em 18/08/2025 às 20:00

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Durante o bloqueio ao ir e vir dos recifenses, ao longo da segunda-feira (18), imposto pelos trabalhadores que utilizam tração animal para suas atividades, chamou atenção a declaração de um representante da classe. Ele pedia respeito à "tradição" e à "cultura" do trabalho deles.

Coisa curiosa, porque a tradição e a cultura, nesse caso, dizem respeito a uma prática extremamente danosa aos animais, com sua força explorada sem qualquer critério que evite crueldade, na maioria das vezes. Se manter a tradição fosse argumento válido para qualquer tipo de absurdo, os duelos de honra, como eram realizados comumente até uns dois séculos atrás, nunca teriam acabado.

Mas um exemplo que se encaixa melhor aqui foi a proibição de fumar em locais públicos como restaurantes e cabines de avião, em São Paulo, na primeira metade dos anos 1990.

Lições do passado

Na época em que a medida foi implementada por Paulo Maluf, na capital paulista, a população quase o linchou. Há um programa Roda Viva histórico, exibido em 1995 com o prefeito paulistano, que hoje é de causar gargalhadas.

O político é acossado pelos jornalistas, revoltados com a proibição. Alguns dizem que "preferem almoçar ao lado de alguém fumando, porque a pessoa estará mais relaxada". Outros dizem que "temem viajar ao lado de alguém estressado porque não pode fumar dentro do avião". E batem no gestor, acusando-o de usurpar o direito dos fumantes de soprar fumaça onde bem entenderem.

Maluf, profético, responde que "no futuro aquelas perguntas seriam ridículas". E realmente já são.

O caso recifense

Agora, vamos falar sobre os carroceiros do Recife.A questão judicial em torno da proibição de animais nas ruas do Recife é longa e vergonhosa. A lei que determinou o fim da tração animal foi aprovada em 2013, mas só começou a ser regulamentada seis anos depois, em 2019, por pressão do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

Mesmo assim, a implementação arrastou-se em fases intermináveis, com sucessivos prazos ignorados pela Prefeitura. O resultado é que passaram-se mais de dez anos entre a sanção da lei e a sua aplicação efetiva, prevista apenas para 2026.

É um retrato nítido da omissão e da covardia de gestores que, temendo consequências eleitorais, ao invés de enfrentar o problema com clareza, preferiram empurrar a decisão para o futuro, deixando a cidade refém de conflitos recorrentes.

Covardia institucional

Quando proibiu a população de fumar, Maluf precisou de coragem institucional. Naquela época, essa coragem consistia em enfrentar as ruas e a opinião pública concentrada em jornais, rádios e televisões.

As redes sociais aumentaram a pressão porque são muito mais reativas.Quanto mais sensível um gestor é aos impactos digitais sobre sua imagem, mais ele foge dos remédios amargos e necessários, como proibir veículos utilizados como tração numa cidade.

Não é um problema apenas do atual prefeito do Recife, mas de todos os novos gestores, emparedados pela popularidade digital que entrega benefícios muito rápido, mas não perdoa quando alguém tem seus interesses prejudicados.

Quanto mais dependente o governante se torna da popularidade digital, menos decisões difíceis ele conseguirá tomar. Quanto mais ele ganhou nas redes, mais terá medo de perder, porque ficou refém daquele sistema de recompensa instantâneo em que quanto mais populista você for, mais vai se obrigar a ser.

Responsabilidade do poder público

O bloqueio que aconteceu nas ruas do Recife foi o resultado de 12 anos de paralisia ou inércia parcial da Prefeitura do Recife, sempre com medo da repercussão política que a medida poderia ter entre trabalhadores do setor.

Quando a cidade decidiu acabar com o transporte alternativo nas kombis, houve episódios de motoristas se acorrentando dentro da Câmara de Vereadores e parando as ruas. A polícia agiu com autorização do governador Jarbas Vasconcelos (MDB), o prefeito João Paulo (PT) foi firme com a proibição e a busca por alternativas. A situação foi resolvida.

Algumas tradições e culturas precisam mudar com a evolução do tempo. É responsabilidade do poder público conduzir essas transições e não se esconder. Para isso é preciso coragem.

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