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O país diante do espelho: por que ainda é preciso criar consciência negra?

No 20 de novembro, o Brasil revisita o que tenta não enxergar — o Zumbi, o quilombo, a resistência e a ferida aberta que ainda estrutura o presente

Por Eduardo Scofi Publicado em 19/11/2025 às 14:19 | Atualizado em 19/11/2025 às 14:19

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No Dia da Consciência Negra, o Brasil encara uma questão que insiste em atravessar séculos: o que significa criar consciência em uma sociedade que ainda convive com desigualdades assentadas do período escravista?

Estabelecido em 20 de novembro, o dia não nasceu de decreto. Ele surgiu da mobilização do movimento negro, que escolheu a morte de Zumbi dos Palmares como símbolo de uma liberdade construída pela resistência coletiva, não pela assinatura de uma lei.

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A memória de Zumbi segue como símbolo de uma luta que o país ainda tenta silenciar - Agência Brasil
 

O 13 de maio registrou a abolição formal, mas a escolha de novembro recorda um processo mais profundo. Reconhece a luta ativa de milhares de pessoas que criaram quilombos, articularam fugas, construíram comunidades e desafiaram um sistema que as tentava silenciar.

A consciência negra emerge desse gesto de reposicionar a história e de revelar o que ficou fora da narrativa, confrontando a ideia de que a desigualdade racial é um capítulo encerrado.

O espelho e o reflexo

Uma pesquisa de 2024 do Instituto Locomotiva e da QuestionPro mostra que o Dia da Consciência Negra tem o apoio de 76% dos brasileiros. A maioria dos entrevistados afirma considerar a data importante, reconhecendo a necessidade de discussão do racismo e de defesa do feriado nacional.

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A maioria dos brasileiros afirma apoiar o Dia da Consciência Negra, mas o desafio real é transformar consenso em prática - Agência Brasil

O contraste, porém, revela uma contradição do Brasil: como pode a maioria da população apoiar uma data que existe justamente porque o país segue produzindo os mesmos casos diários de violência racial? Talvez porque o consenso sobre a data não se traduz em prática, ou seja, o país olha o espelho, mas evita o reflexo.

O que é criar consciência?

Criar consciência não é uma noção abstrata. Ela inicia no dia a dia e nas mudanças de hábitos naturalizados que passam despercebidos por olhares desatentos. O professor de Filosofia Salviano Feitoza afirma que esse processo nasce de perguntas simples.

“Eu escuto pessoas negras? Eu assisto filmes protagonizados por pessoas negras, e não em situações de subalternidade?”. Segundo ele, esses questionamentos produzem análises que desestabilizam porque expõem uma ausência tratada como neutra.

Waneska Viana, mestre em Educação, Cultura e Identidades e integrante do Coletivo Filhas do Vento, amplia essa ideia ao afirmar que consciência implica reconhecer disputas históricas e políticas. Ela enfatiza que “é preciso conscientizar para entender que a população negra está reivindicando direitos historicamente negados”.

Para ela, não se trata apenas de olhar para o passado, mas de entender como ele se projeta no presente, compreendendo também a importância da população negra na história do país, para além do que é lido em livros escolares de história.

O racismo que organiza o cotidiano

No Brasil, o racismo não aparece apenas em ofensas explícitas. Ele se manifesta no detalhe, na vigilância seletiva, na surpresa diante da competência, na violência policial e no racismo ambiental.

Salviano descreve esse mecanismo como um tecido difícil de notar, mas decisivo, já que “existe todo um contexto racista que está nas práticas mais sutis do cotidiano”. Essas sutilezas não são inofensivas, pois moldam trajetórias e subjetividades, especialmente na primeira infância.

Porém, para o filósofo, reconhecer o problema não basta, uma vez que “ter apenas a consciência de onde as pessoas negras estão na nossa vida é apenas um aspecto: é preciso transformar as condições materiais de existência”.

Sem ação concreta, a consciência se esvazia e a história vira estória, ou seja, deixa de ser um processo real de transformação e se torna apenas um relato simbólico, sem força para alterar a vida das pessoas.

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As práticas racistas que estruturam o cotidiano vão do detalhe imperceptível ao silenciamento explícito - Agência Brasil

Feridas que moldam subjetividades

Quando se fala de subjetividades da existência negra, as marcas do racismo ultrapassam estatísticas e se alojam na identidade.

Waneska observa como isso atinge crianças negras muito cedo, influenciando na base a forma como essas crianças passam a compreender o próprio valor. Ela afirma que “o racismo elimina a subjetividade das pessoas, elimina a confiança, elimina a identidade”.

Esse efeito psicológico silencioso, contínuo e profundo criou indivíduos intrinsecamente atravessados pela insegurança e pelo sentimento de não pertencimento, elementos produzidos pelo próprio racismo.

Nesse sentido, se faz fundamental “reforçar a defesa por políticas públicas estruturadas, sejam elas a educação antirracista, ações afirmativas e espaços de acolhimento”, como afirma Salviano.

Conscientizar, nesse caso, também significa criar condições para que essas identidades possam existir, sem diminuir suas existências e potencialidades.

A mulher negra e a interseção da existência

Entre as desigualdades estruturais, a mulher negra ocupa um lugar particularmente marginalizado e, ao mesmo tempo, central. Ela sustenta famílias, comunidades e redes de cuidado mas, ao mesmo tempo, é quem mais sofre quando o Estado falha.

Para especialistas, a repetição desse padrão não é acidental, já que é um efeito direto da interseção entre raça e gênero. Esses recortes profundos, sobrepostos, evidenciam estigmas ainda mais severos que acompanham vivências da maioria da população.

“As mulheres negras são as que sofrem mais violência doméstica e até estupro, os números reforçam essa realidade”, afirma Waneska.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2023, elas foram 63,6% das vítimas de feminicídio, 68,6% das vítimas das demais mortes intencionais de mulheres e 52,5% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável. Além disso, 45% relataram ter sofrido algum tipo de violência de um parceiro íntimo ao longo da vida.

Mesmo diante desse cenário, a pesquisadora ressalta que a identidade da mulher negra não pode ser reduzida à dor. Há uma construção de valor, pertencimento e continuidade que opera como força motriz.

Para ela, “ser mulher negra é ter consciência do seu valor, do valor do seu povo”. Ou seja, colocar-se como mulher negra é reconstruir a autoestima em um país que tantas vezes oferece espelhos distorcidos e oportunidades folclóricas.

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No Brasil, representatividade não é só presença, é disputa simbólica e afirmação de existência - Agência Brasil

Quem narra e quem decide o país

Embora a maioria da população brasileira seja negra, essa representatividade não aparece nos espaços de poder. No Legislativo e no Judiciário, por exemplo, a ausência segue evidente.

“Por que a gente tem o maior número de população negra e não se vê nesses espaços de poder?”. Essa pergunta, para Waneska, revela uma incoerência histórica, na qual “a população negra geralmente não está nos espaços de deliberação".

Os números da última eleição para a Câmara dos Deputados ajudam a dimensionar essa distância. Em 2022, mesmo com o aumento de 36,25% das candidaturas de pessoas pretas e pardas em relação a 2018, o avanço não se refletiu nas urnas: o total de eleitos cresceu apenas 8,94%.

A mesma lógica opera na cultura. Salviano observa que, quando narrativas audiovisuais tentam mudar essa hierarquia, o estranhamento costuma vir rápido. “Quando aparece alguma produção com pessoas negras em outra situação [diferente da tradicional], se questiona, se problematiza”.

O desconforto evidencia que representatividade não é apenas presença, mas disputa simbólica e que, “trazer essas narrativas também é resultado do combate ao racismo. Pois está na sutileza nada sutil da indústria cultural a reafirmação dessas narrativas de dor e sofrimento”, afirma o professor.

O incômodo com o 20 de novembro

O feriado de 20 de novembro provoca reações porque altera expectativas. Ele desloca o centro da narrativa e expõe o que o país tentou amenizar.

As críticas à data geralmente aparecem envoltas em argumentos técnicos, citando impacto na economia, na produtividade e no calendário, numa tentativa de sugerir que o problema reside no feriado e não no que ele simboliza.

Mas, na realidade, “qualquer situação que traga protagonismo para as pessoas negras vai ser vista como exagerada, como algo que atrapalha a economia”, aponta Salviano.

Em uma sociedade hiperconectada, alegar desconhecimento já não é justificativa. A rejeição à data revela outro tipo de escolha, pois “não entender que esse feriado faz parte de um processo histórico ligado à população negra é falta de empatia e comodismo”, afirma Waneska. O incômodo, então, não está no feriado, mas no que ele exige: reposicionamento.

Um caminho urgente

Desenvolver consciência é reconhecer que a história não termina quando se define uma data, mas quando se reequilibra uma estrutura. O Dia da Consciência Negra marca um ponto de inflexão: a escolha de encarar desigualdades que ainda moldam o país e de afirmar uma memória que não pode ser reduzida a um calendário.

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O 20 de novembro é sobre lembrar que a liberdade foi construída pela resistência coletiva, não por decretos - Agência Brasil

O 20 de novembro é, além de um marco, um convite a rever narrativas, transformar práticas e ampliar o campo de quem deve existir plenamente. É um caminho que, atualmente, é cada vez mais urgente ser trilhado.

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