A força de uma região tecnológica que impulsiona a inovação
Consolidado como polo tecnológico, Nordeste enxerga futuro ainda mais promissor com investimentos em infraestrutura de data centers e serviços

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Antes visto como periferia do desenvolvimento tecnológico, o Nordeste brasileiro passou por uma transformação profunda e se consolidou como um dos principais polos de inovação do País. O que antes era visto como uma fronteira distante do desenvolvimento de tecnologias, hoje desponta como um dos principais vetores de ecossistemas digitais do Brasil e do mundo.
A região se torna estratégica por abrigar a principal malha de cabos submarinos e pontos de conexão internacional de dados do país, o que coloca a região em posição privilegiada para se consolidar como um hub estratégico de data centers e infraestrutura digital.
Prova disso é o recém-anunciado mega data center da chinesa ByteDance, controladora do TikTok, que será instalado no Complexo do Pecém, no Ceará, com investimento de R$ 50 a R$ 55 bilhões.
O projeto, anunciado pelo presidente Lula e pelo CEO global da empresa, Shou Zi Chew, durante agenda da ONU em Nova York, é um dos maiores aportes individuais em infraestrutura digital já feitos no Brasil e um marco da consolidação da região como eixo estratégico para grandes companhias de tecnologia que buscam operar no país.
Mas os meios de investimentos não se limitam à infraestrutura. A região também abriga polos que combinam criatividade, formação acadêmica sólida e ambiente fértil para startups e empresas de tecnologia. E um dos símbolos mais visíveis dessa virada é o Porto Digital, na capital pernambucana.
Criado há pouco mais de duas décadas, o parque tecnológico se tornou o principal distrito de inovação da América Latina e reúne mais de 470 empresas embarcadas, empregando cerca de 21 mil profissionais.
O polo se tornou referência em tecnologia da informação, comunicação e economia criativa, abrigando tanto gigantes nacionais quanto startups em expansão global. Entre as empresas embarcadas estão Accenture, Avanade, Stelantis, Liferay, Globo, Solar Coca-Cola, além de ecossistemas como CESAR e Neurotech.
Além da movimentação bilionária — em 2024, o faturamento do centro foi de R$ 6,2 bilhões —, o Porto Digital serve de modelo para outros estados nordestinos que buscam estruturar ecossistemas próprios.
A experiência é tão exitosa que já expandiu a atuação para hubs instalados na cidade de Caruaru, no Agreste pernambucano, no estado de Goiás e na cidade de Aveiro, em Portugal. Outra unidade está prevista para ser inaugurada em Petrolina, no Sertão, em 2026.
Capital humano e startups favorecem crescimento
De acordo com Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, dois fatores contribuíram para o crescimento do parque tecnológico recifense.
"Aqui a gente tinha um ecossistema e todas as condições colocadas. Recife é um polo formador muito grande de capital humano, isso ajudou e tem ajudado muito, além de ser um polo de startups que nascem aqui. Esses foram os grandes motivos que fizeram com que Recife crescesse", explicou.
O número de alunos concluintes de cursos de tecnologia no Recife também dobrou de 2022 para 2024, segundo o Censo do Ensino Superior, do governo federal, o que favoreceu o fornecimento de mão de obra qualificada citada por Pierre.
Dados do levantamento do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostram que os empregos formais na área de tecnologia no Recife cresceram 11,98% em junho de 2025, em comparação a junho de 2024. O número é o triplo do índice de empregos gerais. No mesmo período, São Paulo só subiu 1,48% e o Rio de Janeiro caiu 3%.
"Esse é o motivo pelo qual a gente está crescendo muito, formação de capital humano, empresas nascendo, esses dois fatores fazem com que a gente tenha uma geração de empregos bem acima do normal", explicou.
Foco na formação de mão de obra qualificada
Grande parte da mão de obra de qualidade do estado é egressa do Centro de Informática (CIn), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), uma das principais referências na formação de profissionais de tecnologia no país.
Segundo o vice-diretor do CIn, Ricardo Massa, o centro recebe anualmente cerca de 350 novos alunos de graduação, distribuídos em quatro cursos: Sistemas de Informação, Ciência da Computação, Engenharia da Computação e Inteligência Artificial.
Na pós-graduação, o CIn mantém o programa de mestrado e doutorado em Ciência da Computação, reconhecido com nota máxima (nível 7) pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). "É o único curso com esse nível no Norte, Nordeste e Centro-Oeste", afirmou Massa.
Além do Porto Digital, atualmente o CIn mantém cerca de 40 projetos em parceria com empresas públicas e privadas, reforçando a conexão entre academia e mercado. "Isso tem um impacto extremamente positivo para a sociedade, é algo bastante relevante e transformador", afirma Massa, acrescentando que mais empresas de grande porte têm buscado o Recife devido à alta qualidade da formação.
"A gente tem muitas empresas atuando conosco: Samsung, Motorola, Apple, Stellantis, Embraer. Recentemente, o Bradesco trouxe o seu centro de inovação, o InovaBra, para o Recife. A expectativa é empregar cerca de 600 profissionais. Isso acontece porque todos que chegam aqui enxergam a cidade e a região como um polo com mão de obra de extrema qualidade. E mais que isso: o povo daqui é animado, vibrante. Os estudantes estão sempre criando startups e desenvolvendo novas ideias. É um ambiente muito dinâmico", afirmou.
Ele atribui o desempenho à combinação de fatores. "O primeiro é a qualidade dos professores. Temos docentes altamente qualificados, muitos com doutorado no exterior e reconhecimento internacional. Além disso, há um cuidado de gestão e respeito às individualidades. Temos professores voltados exclusivamente à pesquisa, outros à inovação tecnológica e transferência de conhecimento, alguns mais dedicados ao ensino e outros à administração. Essa diversidade é uma força do CIn."
Outro diferencial é a estrutura de trabalho. "Os laboratórios funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana. O aluno entra com o crachá e tem livre acesso. Isso cria um ambiente vivo, de interação constante. Apoiamos todas as iniciativas estudantis e estamos sempre à frente da fronteira tecnológica, buscando desafios complexos que atraiam pessoas de alto nível", acrescenta.
Para Massa, esse conjunto de fatores faz do Recife um ambiente ideal para inovação. "Juntando tudo isso, temos um espaço extremamente propício para o desenvolvimento e o trabalho de qualidade que buscamos fazer aqui. Isso atrai alunos não só de Pernambuco, mas de várias partes do Brasil. Se tivéssemos infraestrutura para dobrar o número de vagas, receberíamos o dobro de alunos, todos de altíssimo nível", conclui.
Melhor momento para atuar
Egresso do CIn, Ronald Dener é CEO da empresa de desenvolvimento de produtos digitais Capyba, embarcada no Porto Digital. Fundada no Recife em 2015, a companhia atende a clientes de vários estados do Brasil e do mercado internacional, tendo no portfólio atuação nos Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Portugal, Itália e Angola.
A empresa, especializada em soluções na área da saúde e serviços, já desenvolveu produtos para clientes privados e públicos, como Ministério da Saúde, Prefeitura do Recife, Unilever, Siemens, RioMar, Senai e Sebrae.
Ronald é formado em Engenharia da Computação e conta que grande parte da turma atua no eixo Sul-Sudeste do país ou no exterior. Indo na contramão desse movimento, ele e o sócio optaram por manter as raízes no estado.
"Sou muito apegado às coisas daqui e ele [o sócio] também, e a gente não queria sair daqui para trabalhar nessas grandes empresas. Então a gente resolveu criar uma empresa que olhasse para o modus operandi de Recife e respeitasse a vida das pessoas, que tivesse um equilíbrio do profissional com o pessoal. A partir disso a gente começou a construir soluções próprias, depois começamos a construir soluções para terceiros e aí a empresa começou a se consolidar", contou.
Dener revelou que grande parte da equipe está baseada na Região Metropolitana do Recife, mas também há profissionais espalhados em outras regiões do país. Segundo ele, estar no Nordeste foi um desafio no início da trajetória, 10 anos atrás, mas que enxerga um avanço no momento atual.
"Tem todo esse desafio de você conseguir acessar essas grandes contas aqui no Nordeste e de se fazer presente no eixo Centro-Sul, onde o dinheiro circula. Por mais que a gente tenha atores que ajudem nesse processo, a cultura de consumo de tecnologia ainda precisa ser mais trabalhada quando a gente fala de Nordeste", relatou.
"Mas hoje os caminhos estão sendo facilitados. Existe o Porto Digital, uma marca que gera uma credibilidade maior, e vários outros caminhos, como programas que atraem indústrias e seus problemas e aproxima startups que podem resolvê-los. A gente também voltou a ter um grande volume de investimento em fomento público. Para quem está começando, ainda é difícil, mas sem dúvida hoje esse caminho está mais facilitado por conta desses agentes", analisou.
O Ceará como ponte para o mundo
Além da área de serviços, o investimento em infraestrutura tecnológica é outro filão em crescimento no Nordeste. Na Praia do Futuro, em Fortaleza, está concentrada a principal porta de entrada e saída de dados do Brasil. Doze cabos submarinos conectam o país à Europa, África, Caribe e América do Norte, formando a maior infraestrutura do tipo na América Latina e a 17ª do mundo.
O sistema é responsável por cerca de 90% do tráfego internacional de internet que circula pelo território brasileiro. Outras capitais nordestinas também contam com terminais de cabos, como os do sistema Brazilian Festoon, ampliando a rede de conectividade da região.
Essa proximidade com cabos submarinos internacionais facilita a conexão direta com redes globais de dados e, aliada à oferta estável de energia elétrica, torna o local especialmente favorável à implantação e operação de grandes data centers. O estado já soma 12 instalações do tipo.
O potencial da região como hub de data centers também está diretamente ligado à baixa latência garantida pela proximidade com cabos submarinos internacionais e à oferta estável de energia em grande escala, fatores que tornam a região especialmente atraente para operações digitais de alta performance.
Com a chegada do novo data center da ByteDance, o estado poderá se tornar o segundo maior polo de data centers do país, atrás apenas de São Paulo.
Para o governo federal, o projeto poderá impulsionar a atração de novos projetos do segmento em outros estados. "Liberamos hoje para que o Ceará consiga ser o primeiro estado a ter um data center de grande porte e sirva de estímulo para outros estados fazerem a mesma coisa", afirmou o presidente Lula, em julho, ao assinar uma Medida Provisória que obriga o uso exclusivo de energia renovável em Zonas de Processamento de Exportação (ZPE), ação que potencializou a chegada do data center ao Ceará.
Outros polos em expansão
Entre os novos projetos de data centers no Nordeste está o da HostDime, em João Pessoa, e o da Tecto. A companhia atua na capital paraibana desde 2017, com um data center de 3 megawatts que oferece serviços de nuvens pública e privada.
Em 2026, a empresa inicia a construção de um novo centro de dados, quatro vezes maior, com investimento de R$ 250 milhões e capacidade de 15 megawatts. Prevista para ser concluída em 2027, a nova unidade contará com tecnologias avançadas de eficiência energética, incluindo geração própria de energia solar e eólica e sistemas de resfriamento otimizados por free-cooling.
Outro data center em desenvolvimento é da Um Telecom, no Recife. O primeiro empreendimento da marca, o Recife 1, da da Atlantic Data Centers, está sendo construído no Parque Tecnológico de Eletrônicos e Tecnologias Associadas de Pernambuco (Parqtel), no bairro da Várzea, com conclusão prevista para dezembro deste ano.
Já Campina Grande, na Paraíba, conhecida pelo tradicional São João, abriga o Parque Tecnológico da Paraíba, que reúne empresas do setor e instituições de ensino superior voltadas à pesquisa e ao desenvolvimento de soluções digitais.
O avanço tecnológico local é impulsionado pela forte base educacional, com destaque para a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e o Instituto Federal da Paraíba (IFPB), reconhecidas pelos cursos de Ciência da Computação bem avaliados no Enade.
Por meio da Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Criativos e Inovadores (ITCG), o parque apoia startups e novos projetos, promovendo a criação e exportação de produtos tecnológicos e reforçando a versatilidade dos modelos de negócios em tecnologia da região.
Desafios ainda são persistentes
Para Pierre Lucena, do Porto Digital, um dos principais desafios do desenvolvimento tecnológico do Nordeste passa necessariamente pelo investimento em pessoas. Na avaliação dele, há dois entraves centrais que precisam ser enfrentados.
"O grande problema que o Nordeste e o Brasil têm é a falta de capital humano. O Recife cuidou disso, mas o Brasil não. E também o empreendedorismo de base. O Brasil, de alguma forma, tem se ressentido muito porque a gente desestruturou muito as bases de empreendedorismo durante alguns anos", observou.
Segundo Pierre, entre 2013 e 2022, houve um enfraquecimento das iniciativas empreendedoras, o que afetou também as universidades. Ele destaca que, com a reforma tributária em curso, a principal saída para o crescimento do Nordeste está no setor de serviços.
Além disso, também chama atenção para os desafios trazidos pela inteligência artificial e para a necessidade de o país se preparar para as mudanças.
"No caso aqui do Recife, particularmente, a nossa opção é que o investimento seja feito nas pessoas para gerar mais empregos. É isso que a gente tá apostando já há alguns anos e eu acho que é o caminho mais certo", afirmou.
Para Ronald Dener, CEO da Capyba, o primeiro passo para o avanço da tecnologia na região é superar a autodepreciação. "A primeira coisa é que a gente pare com essa síndrome de vira-lata, porque a gente tem capacidade de sobra para criar inovação a partir daqui. O que a gente faz aqui não deixa a desejar para nenhum outro centro de inovação do mundo", disse.
"A gente é muito bom tecnicamente. Hoje, a barreira de entrada para construir soluções está diminuindo com o avanço das aplicações de IA e LLMs. A gente tem tudo que precisa para criar inovação a partir daqui. Não precisa sair para construir isso. Ainda há dificuldades, o ecossistema tem muito a amadurecer, mas sem dúvida já demos passos largos em comparação a dez anos atrás", concluiu.