"Tijolo por Tijolo", premiado no Festival Visões Periféricas, humaniza a vida nas periferias do Recife
O longa-metragem pernambucano estreou em 14 de agosto nos cinemas e vem de uma série de premiações, tanto nacionais quanto internacionais

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Em tempos em que a desigualdade social se faz cada vez mais visível, histórias que mostram a resistência e a força das periferias ganham destaque na sétima arte. O cinema brasileiro volta os olhos para as comunidades em "Tijolo por Tijolo", longa-metragem dirigido por Victória Álvares e Quentin Delaroche, que chegou aos cinemas de todo o Brasil no dia 14 de agosto.
Com precisão documental e cuidado estético, o filme acompanha a rotina de Cris Martins, moradora do Ibura, bairro periférico do Recife. Entre a perda de empregos, a descoberta de uma quarta gravidez e o risco de desabamento da própria casa, o cotidiano de Cris se revela um retrato da força, da resistência e da inventividade de milhares de famílias brasileiras que enfrentam desigualdades estruturais diariamente.
O documentário, resultado de dois anos de acompanhamento, captura cada gesto, decisão e conflito com intimidade e delicadeza, mostrando que a luta por moradia, direitos reprodutivos e sustento se entrelaça com momentos de alegria e criatividade.
"Para a gente é isso: uma alegria enorme perceber que, neste momento do cinema nacional e pernambucano, também estamos podendo dar a nossa contribuição, o nosso 'tijolinho', para criar uma nova imagem do Brasil, das nossas classes periféricas e dos nossos territórios periféricos. Para mim, Tijolo por Tijolo é um filme sobre uma mulher, sobre uma família que não é vítima nem heroína na sociedade. É uma mulher e uma família que se recusam a abrir mão de sonhar. Eu acho que essa é a maior característica do povo brasileiro, especialmente das nossas periferias", afirma Victória Álvares, diretora do longa-metragem.
Premiado em cerca de 20 festivais nacionais e internacionais, "Tijolo por Tijolo" já coleciona reconhecimento por melhor direção, melhor montagem e prêmios de crítica, consolidando-se como um dos documentários pernambucanos mais importantes da década. E, por se tratar de um tema de periferia, o prêmio no Festival Visões Periféricas fez um grande jus ao trabalho dos diretores.
Márcio Blanco, Doutor em Comunicação (UERJ) e diretor do Festival Visões Periféricas, explica como funcionam as mostras: "ao longo desses 20 anos, foram criadas quatro distintas dentro do festival. A primeira delas, Visorama, nasceu como uma amostra de filmes produzidos em processos de formação, como escolas públicas, ONGs e projetos sociais".
"Logo em seguida, surgiu Fronteiras Imaginárias, voltada para curtas-metragens de realizadores independentes de todas as regiões do país. O Cinema da Gema se dedica a um recorte específico: produções da periferia do Rio de Janeiro, destacando o cinema local e suas narrativas únicas. Por fim, a Mostra Panorâmica reúne longas-metragens de todo o Brasil, oferecendo uma visão ampla do cinema nacional contemporâneo", conclui Blanco.
Em 2025, "Tijolo por Tijolo" foi contemplado com o prêmio de Melhor Longa-Metragem na Mostra Panorâmica, reconhecimento que reforça a força do filme em retratar a periferia com olhar sensível e genuíno.
"A gente é muito criterioso na hora de fazer a curadoria, sempre pensando na relação do filme com aquilo mostrado na tela. Avaliamos como a obra se conecta com o território em que se passa, com o tema abordado ou com as pessoas que participam do filme. Temos um olhar sensível à relação entre o filme, o território, o tema e os protagonistas da narrativa", diz Márcio.
"A partir dessa perspectiva, verificamos se o filme estabelece uma relação íntima com essas regiões. O território sempre foi, desde o início, o critério mais forte da curadoria. Priorizamos obras feitas nesses espaços, que refletem a realidade local de maneira genuína e significativa", conclui.
E esse foi um dos diferenciais para o documentário ter recebido o prêmio: a obra não apenas mostra a periferia, mas dialoga com ela de maneira profunda, sensível e autêntica, captando nuances da vida cotidiana e da luta dos protagonistas sem recorrer a estereótipos ou simplificações.
"Não nos reduzimos ao imaginário simplista de violência ou carências. Filmamos uma família repleta de amor, criatividade e inventividade, pessoas brilhantes que encontram soluções para o dia a dia e que não se encaixam em um recorte derrotista ou miserabilista", explica a diretora.
Essa abordagem permite que o público compreenda a complexidade da realidade periférica sem cair no clichê, e agora, com o lançamento do filme nas telonas, essas narrativas finalmente chegam ao grande público, permitindo que todos se vejam e se conectem com essas experiências.
"Agora estamos vivendo um momento muito especial: a distribuição em salas de cinema. O filme está sendo lançado para o público, e para nós esse é um momento chave, porque permite que pessoas que talvez não sejam cinéfilas, que não estão habituadas a festivais, debates ou críticas, tenham a oportunidade de ir ao cinema e se ver na tela", diz a diretora.
Para Victória Álvares, isso representa mais do que um lançamento: é dar acesso à história da família Martins a quem talvez nunca tivesse contato com uma experiência cinematográfica tão próxima à própria realidade. O cinema se transforma, nesse contexto, em um espelho, no qual público e personagens compartilham olhares, emoções e identificação.
"Quando realizamos a primeira exibição do filme no Janela, lotamos o cinema São Luiz. Muitas pessoas do Ibura estiveram presentes, e trouxemos dois ônibus de moradores, sendo que um deles era somente de crianças, alunos e colegas dos filhos de Cris. Imagino cinquenta crianças de 10, 11 e 12 anos se vendo no cinema, vivendo a experiência pela primeira vez. Para os quatro filhos de Cris, também foi a primeira ida ao cinema, uma oportunidade de se reconhecer e se conectar com sua própria história", comenta.
A experiência, segundo ela, evidencia o poder transformador da sétima arte: mostrar histórias que refletem realidades próximas e, ao mesmo tempo, tornar visíveis vidas e trajetórias que muitas vezes permanecem invisibilizadas para o público mais amplo.
É essa conexão que transforma a obra em algo mais que um documentário, em um registro de pertencimento e representatividade.
"Para nós, essa é a essência do que fazemos: filmes para que as pessoas se vejam, se sintam transformadas e compreendam o valor de suas vidas e experiências. A história de Cris, de Albert e de sua família é, de muitas formas, a história de milhões de famílias brasileiras: pessoas extraordinárias cujas vidas muitas vezes permanecem invisibilizadas", conclui Victória.
Mais que contar a história de uma família, o longa traduz em tela a complexidade das desigualdades sociais brasileiras, permitindo que o público vivencie a rotina de Cris com proximidade, empatia e emoção.
Entre sonhos, desafios e estratégias de sobrevivência, "Tijolo por Tijolo" se estabelece como um retrato literário e humano da periferia, no qual cada tijolo erguido representa resistência, luta e esperança.
Confira o trailer: