Pela primeira vez, STF rejeita acusação contra suspeitos de tentativa de golpe
Dos 12 denunciados do "núcleo de ações coercitivas", dez foram tornados réus pela primeira turma e dois tiveram denúncias rejeitadas

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu nesta terça-feira a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra dez dos 12 acusados do "núcleo de ações coercitivas" (núcleo 3) do plano de golpe de Estado para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder após a derrota na eleição de 2022.
A decisão foi unânime. Os ministros Alexandre de Moraes (relator), Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin votaram para tornar réus os dez denunciados.
O grupo vai responder a um processo penal por cinco crimes - organização criminosa armada, golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito, deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado contra o patrimônio da União. Os dez réus - nove oficiais do Exército e um policial federal - eram responsáveis, segundo a PGR, por "ações coercitivas" na trama golpista.
A denúncia afirma que eles promoveram "ações táticas" para pressionar o Alto-Comando do Exército a aderir a uma ruptura institucional, como a Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro, manifesto divulgado após o segundo turno do pleito de 2022 com críticas ao Judiciário e referências à "insegurança jurídica e instabilidade política e social no País".
Ainda segundo a PGR, os militares empreenderam "ações de campo" para o "monitoramento e neutralização de autoridades" no fim de 2022, incluindo Moraes e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como o Plano Punhal Verde e Amarelo, a Operação Copa 2022 e a Operação Luneta.
Novos réus por tentativa de golpe de estado
Vão responder a processo Bernardo Romão Correa Netto, coronel do Exército; Estevam Theóphilo, general do Exército; Fabrício Moreira de Bastos, coronel do Exército; Hélio Ferreira Lima, coronel do Exército; Márcio Nunes de Resende Júnior, coronel do Exército; Rafael Martins de Oliveira, tenente-coronel do Exército; Rodrigo Bezerra de Azevedo, tenente-coronel do Exército; Ronald Ferreira de Araújo Júnior, tenente-coronel do Exército; Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, coronel do Exército; e Wladimir Matos Soares, policial federal.
O tenente-coronel Cleverson Ney Magalhães e o general Nilton Diniz Rodrigues, também denunciados no "núcleo 3", foram poupados do processo criminal. Os ministros entenderam que não há indícios mínimos contra eles.
Em relação aos demais, o colegiado afirmou que há elementos suficientes para receber a denúncia e abrir um processo criminal Nesta fase não há juízo de valor sobre as acusações. O julgamento do mérito do processo só ocorrerá após a chamada instrução da ação - etapa em que são ouvidas testemunhas e podem ser produzidas novas provas.
A Primeira Turma já recebeu as denúncias contra o "núcleo crucial", o "núcleo de gerência" e o "núcleo de desinformação" do golpe. Falta apenas a análise das acusações contra o empresário Paulo Figueiredo Filho, que será votada em separado porque ele mora fora do País. Até agora, 31 dos 34 denunciados pela PGR viraram réus, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Delação de Mauro Cid como defesa
Uma das estratégias das defesas foi tentar usar a delação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, a favor dos acusados. Em sua colaboração, Cid tratou como "conversa de bar" a reunião dos militares das Forças Especiais do Exército, os "kids pretos", em novembro de 2022, em que, segundo a PGR, os oficiais denunciados começaram a traçar estratégias para pressionar o Alto-Comando do Exército a apoiar o plano de golpe (mais informações nesta página).
A subprocuradora da República Cláudia Sampaio Marques, que falou em nome da PGR, por sua vez, defendeu o recebimento integral da denúncia. Ela argumentou que os denunciados "exerceram relevante papel na execução das estratégias de ruptura do regime democrático". "Tudo foi previsto nos seus mínimos detalhes", disse ela.
Reação das instituições não era esperada
Moraes afirmou em seu voto que os oficiais não acreditavam que as instituições reagiriam à altura para impedir um golpe. E criticou a tentativa de intervenção de uma ala das Forças Armadas nas eleições sob a justificativa de resolver uma "crise institucional".
"As Forças Armadas não são um poder moderador. Em um estado democrático de direito, após as eleições, as Forças Armadas não têm que decidir nada. Quem perde eleição em uma democracia vai para casa, vira oposição e tenta voltar quatro anos depois. Esse é o regime democrático."
Moraes ainda rebateu as defesas, que alegaram que as acusações não foram individualizadas, e justificou que a denúncia deveria ser analisada no contexto de uma atuação conjunta dos militares com os outros núcleos descritos pela PGR, especialmente o "núcleo crucial". Bolsonaro foi acusado de integrar o grupo.
Moraes: "Jogar a democracia fora"
O relator afirmou que mensagens recuperadas na investigação comprovam que a finalidade da reunião dos "kids pretos" era alinhar estratégias de pressão a superiores hierárquicos.
Moraes leu no plenário trechos de conversas. "Se fosse para tomar cerveja com os amigos, não haveria necessidade de excluir mensagens. Não era uma conversa de bar para jogar conversa fora. Na verdade, era para jogar a democracia fora."
Dino chamou atenção para a gravidade do envolvimento de integrantes das Forças Armadas nas articulações golpistas. "O que distingue as Forças Armadas de um bando? A hierarquia e a disciplina. Forças Armadas sem hierarquia e disciplina são uma ameaça ao estado democrático de direito." Cármen Lúcia apontou "uma organização com largo período de preparação, de início de execução, para a prática de atos que atentaram contra os bens democráticos".
Suspeitas suficientes para iniciar processo
Fux afirmou que, nesta fase, as suspeitas são suficientes para dar início ao processo, mas disse que há lacunas que precisam ser comprovadas na instrução da ação penal. "Essa questão de pressionar de baixo para cima é que nós vamos verificar até que ponto essa capacidade de persuasão ocorreu."
Zanin, presidente da Primeira Turma, também fez a ressalva de que, por ora, não há "juízo de culpa". "Evidentemente que, ao longo da instrução, vamos ter que analisar detalhadamente as provas que serão produzidas", disse o ministro.
Defesas negam pressão sobre Alto-Comando
A estratégia das defesas dos denunciados do "núcleo de ações coercitivas" incluiu a tentativa de usar a delação do tenente-coronel Mauro Cid a favor dos acusados. O ex-ajudante de ordens da Presidência tratou como "conversa de bar" a reunião de 2022 em que, segundo a Procuradoria-Geral da República, os oficiais discutiram como pressionar a cúpula do Exército para apoiar o golpe.
"Se a delação é válida para acusar, ela é válida para defender", disse o advogado Ruyter de Miranda Barcelos, que defende o coronel Bernardo Romão Correa Netto. As defesas trataram o encontro como uma "confraternização", e não como uma reunião sobre "ações táticas".
O advogado Marcelo César Cordeiro, que falou em nome do coronel Fabrício Moreira de Bastos, questionou a acusação de que oficiais de menor patente se uniram para pressionar superiores hierárquicos. "Imaginem se é possível que um grupo pequeno de coronéis vai se reunir, fazer uma carta, para influenciar general quatro estrelas. Não é crível isso. Isso é impossível de acontecer em uma caserna."
O policial federal Wladimir Matos Soares é o único denunciado do núcleo 3 que não faz parte dos quadros do Exército. Em conversas recuperadas pela PF, Soares fala em "matar meio mundo". O advogado do policial, Ramon Gomez Júnior, alegou que não há provas cabais do envolvimento de seu cliente com os militares.