Fiscalizações em unidades de saúde do Recife geram discussão sobre limites do trabalho dos vereadores
Ministério Público fez série de recomendações que limitam as visitas. Vereadores de oposição acusam prefeitura de cercear os atos fiscalizatórios.

As recentes fiscalizações feitas por vereadores do Recife em unidades de saúde e publicadas em redes sociais despertaram uma discussão sobre os limites do trabalho dos parlamentares em atos fiscalizatórios na cidade. Enquanto a oposição defende que tem prerrogativa para adentrar nos hospitais para constatar e denunciar irregularidades, entidades médicas e o Ministério Público pedem que haja cautela para que as visitas não prejudiquem o serviço e não exponham pacientes e profissionais.
Essas fiscalizações filmadas vêm sendo feitas pela nova oposição desde janeiro, mas o debate ganhou força no mês de março, após o vereador Eduardo Moura (Novo) visitar a policlínica e maternidade Barros Lima, em Casa Amarela. Sob a justificativa de identificar uma suposta falta de médicos na unidade, ele filmou áreas da unidade, exibiu pacientes e discutiu com uma funcionária que era contrária à gravação. Policiais militares chegaram a acompanhar a ação.
De lá para cá, outros vereadores da oposição também passaram a intensificar as visitas de fiscalização em hospitais e policlínicas para gravar vídeos e publicar em seus perfis nas redes sociais, como Tiago Medina e Gilson Filho, ambos do PL.
A Constituição Federal, vale destacar, no seu artigo 31, determina que os vereadores são responsáveis pela fiscalização dos municípios, tanto por controle externo quanto interno. O artigo 39 da Lei Orgânica do Recife também diz que os vereadores, no exercício do mandato e dentro do município, podem "ter acesso a repartições públicas, seus documentos e informações relevantes ao interesse do município".
A reclamação da bancada aliada do prefeito e de entidades de saúde recai sobre a forma como os vereadores realizam as visitas. Eles reiteram que os parlamentares têm a prerrogativa de fazerem as fiscalizações, mas argumentam que a ação dos opositores poderia colocar em risco os pacientes das unidades de saúde.
Após o episódio envolvendo o vereador Eduardo Moura, o Conselho Regional de Medicina em Pernambuco (Cremepe) emitiu uma nota repudiando as filmagens nas unidades de saúde. Embora tenha reconhecido que a fiscalização é essencial para os serviços públicos, a entidade afirmou que visitas "imprudentes" podem expor pacientes e profissionais de saúde, além de prejudicar a qualidade do atendimento e o ambiente de trabalho.
"A prática dessas referidas visitas pode gerar instabilidade nas unidades de saúde e comprometer a continuidade do atendimento aos pacientes. [...] A entrada de qualquer pessoa sem a devida autorização em áreas restritas dos hospitais, especialmente para a realização de gravações, não se alinha às diretrizes éticas e legais que regem o ambiente hospitalar", diz o comunicado do órgão.
O Conselho Regional de Enfermagem de Pernambuco (Coren-PE) também repudiou a gravação feita por Eduardo Moura. "Ao tentar buscar informações sobre a suposta ausência de médicos na instituição, o vereador passou a interpelar rispidamente os profissionais de enfermagem que ali desempenhavam suas atividades, além de provocar interferência indevida no exercício profissional da enfermagem e causar transtornos ao atendimento da população", afirmava a nota.
Ainda em março, uma audiência pública foi promovida pela comissão de Saúde da Câmara do Recife para discutir os limites das fiscalizações, os direitos, deveres e as condutas dos vereadores. Sindicatos, órgãos, parlamentares e profissionais de saúde estiveram presentes.
Desde então, o impasse sobre o assunto virou munição para a oposição investir ainda mais nesse tipo de "visita surpresa" a unidades de saúde. As fiscalizações se tornaram o tema favorito dos parlamentares para criar conteúdo para as redes sociais e gerar engajamento entre seus seguidores a partir das denúncias, inflando os aliados contra a gestão de João Campos.
Na última terça-feira (8), por exemplo, Gilson Filho esteve na policlínica e maternidade Professor Arnaldo Marques, no Ibura. Em vídeos publicados no próprio perfil do Instagram, ele diz ter sido impedido de visitar as instalações por uma equipe da secretaria de Saúde do Recife e pela Guarda Municipal.
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Ministério Público recomendou agendamento prévio
No último dia 4 de abril, o Ministério Público de Pernambuco recomendou à Câmara Municipal do Recife que os vereadores só façam visitas de fiscalização em unidades de saúde com agendamento prévio junto à secretaria municipal de Saúde. A orientação vale para hospitais públicos, postos de saúde e outras unidades.
O MPPE também recomendou que as visitas sejam feitas com acompanhamento de profissionais de saúde e com uso de equipamentos de proteção individual (EPI), e que os parlamentares fiquem proibidos de filmar pacientes e profissionais de saúde sem autorização por escrito. A recomendação é para que eles também não entrem em áreas restritas sem autorização do médico responsável.
Segundo as promotoras Helena Capela e Selma Magda Pereira, que assinam a recomendação, as fiscalizações, no modelo em que estão, violam normas sanitárias e expõem profissionais de saúde e usuários de saúde, "extrapolando as prerrogativas do Legislativo".
No texto, publicado no Diário Oficial do MPPE do dia 8 de abril, elas dizem que a entrada individual dos vereadores estaria não estaria de acordo com a legislação. As magistradas citam uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2004 que definiu que o poder de fiscalização sobre o Executivo cabe a órgãos coletivos, como comissões perlamentares, e "nunca aos seus membros individualmente".
"A capacidade fiscalizatória do Legislativo não pode ser exercida de forma ilimitada, especialmente por um membro daquele Poder, devendo ser operada por comissão que tenha recebido poderes para tanto no plenário", argumenta o texto do Ministério Público.
Em janeiro, a bancada de oposição enviou um ofício à presidência da Câmara após o vereador Tiago Medina publicar um vídeo dizendo ter sido barrado por funcionários de fiscalizar as obras da creche Aeroclube, na zona Sul do Recife, e da Ponte Giratória, no bairro de São José.
No texto, os parlamentares citam o artigo 51 da Lei Orgânica do Recife para se respaldar. A legislação diz que é infração político-administrativa do prefeito, vice-prefeito e seus auxiliares "impedir o funcionamento regular da Câmara Municipal, bem como o cerceamento do exercício da atividade fiscalizadora do vereador".
Em resposta, a procuradoria-geral do Recife repetiu o argumento de que as fiscalizações deverão se dar de forma colegiada, não podendo um vereador fazer as visitas de forma individual. A gestão João Campos apontou que a adoção de "controle de acesso a canteiros de obras" buscava "resguardar a segurança dos servidores, trabalhadores e cidadãos".
O presidente da Câmara Municipal do Recife, Romerinho Jatobá (PSB), disse ao JC que recebeu as recomendações do Ministério Público e encaminhou as orientações à procuradoria da Casa para obter um estudo mais detalhado.
"A gente entende que a prerrogativa do vereador deve ser respeitada, mas temos que entender quais são os limites disso. A nossa procuradoria está estudando e vai nos dar um parecer para balizar nossa posição", disse Romerinho.
O MPPE também recomendou à Polícia Militar de Pernambuco que não atenda solicitações de vereadores do Recife para acompanhá-los em inspeções em unidades de saúde, exceto quando houver crime ou a partir de ordem judicial, e que em caso de tumulto, seja enviada viatura ao local e que os envolvidos sejam encaminhados a uma delegacia.
Procurada pela reportagem, a corporação informou que acolheu integralmente a orientação. "A decisão reforça o compromisso da PMPE em servir a sociedade, assegurando ações alinhadas à lei e aos interesses da população", diz a nota.
Suposta cartilha da prefeitura gerou críticas
As recomendações do Ministério Público teriam sido reunidas pela prefeitura do Recife em uma cartilha digital, que teria sido compartilhada internamente com gestores de serviços públicos do município, com o objetivo de orientá-los sobre como agir diante da presença dos vereadores nos espaços.
O documento, obtido pelo Jornal do Commercio, contém a marca da gestão municipal e foi dividido em cinco tópicos, dizendo que:
- Não será possível se realizar qualquer fiscalização em unidades da prefeitura sem se comunicar e agendar previamente;
- A fiscalização não pode ser feita individualmente por vereador. É preciso que seja resultado de representação de uma comissão ou do plenário, como prevê decisão do STF;
- Está proibida a filmagem de usuários e profissionais sem autorização por escrito, principalmente em áreas restritas. No caso de unidades de saúde, também será exigido o aval do gestor responsável;
- A Polícia só está autorizada a agir quando houver prática de crime ou a partir de ordem judicial, devendo se abster de atender solicitações individuais de vereadores;
- Em caso de descumprimento, o MP, a prefeitura e a Câmara poderão adotar todas as medidas cabíveis.
A tal cartilha virou alvo dos parlamentares de oposição, que acusam a prefeitura de orientar seus funcionários a impedir a entrada de vereadores nos serviços públicos com base nas recomendações do MPPE — que não são determinações e, portanto, não são obrigatórias, vale ressaltar.
A reportagem procurou a prefeitura do Recife para confirmar a veracidade do documento, para entender a quem ele teria sido enviado e para saber quais seriam as "medidas cabíveis" citadas no arquivo, mas não recebeu retorno até a publicação deste texto.
Também circulam nas redes sociais prints e áudios que seriam recomendações feitas por gestores municipais orientando funcionários de prédiots públicos a não autorizarem a entrada de vereadores para fiscalizações.
"Se chegar vereador ou equipe de vereador querendo entrar, não deixem. Qualquer alteração ou princípio de querer entrar de qualquer jeito, chamem a gestão imediatamente. Porteiros e vigilante... cuidado com o portão. Mantenham o portão fechado", dizem as mensagens, que teriam sido enviadas para gestores de escolas municipais em um aplicativo de mensagens.
A prefeitura também não confirmou ao JC quem enviou as mensagens e para quem elas teriam sido enviadas.
Vereadores do Recife retrucaram recomendações do MPPE
Na sessão plenária da última terça-feira (8), vereadores de oposição do Recife fizeram discursos contrários à recomendação do Ministério Público de Pernambuco, reforçando seu "compromisso com a fiscalização responsável dos serviços públicos". Eles defendem que as visitas às unidades de saúde não podem ser consideradas arbitrárias e dizem estar sendo intimidados.
Em comunicado conjunto divulgado na última quarta-feira (9), oito parlamentares afirmaram que as visitas in loco e sem aviso prévio "garantem a verificação de maneira fiel as condições dos serviços prestados à população" diante de denúncias recebidas por eles sobre a situação da saúde do Recife.
"Fechar os olhos para esta realidade, intimidando os vereadores de oposição em realizar o seu papel fiscalizador, sugerindo agendamento de dia e horário para realização destas fiscalizações, é uma afronta ao poder legislativo, à democracia e à cidadania", afirma o comunicado.
O texto foi assinado por Felipe Alecrim (PL), Davi Muniz (PSD), Gilson Filho, Eduardo Moura, Tiago Medina, Alef Collins (PP), Fred Ferreira (PL) e Paulo Muniz (PL). Alguns desses parlamentares possuem bastante visibilidade nas redes sociais estão conseguindo fazer barulho contra o prefeito João Campos, que não estava acostumado com uma oposição ferrenha nos últimos anos de gestão.
"Seguiremos exercendo nosso dever com responsabilidade, ouvindo a população e denunciando tudo o que for necessário para garantir uma saúde pública eficiente e digna para a população do Recife", completaram os vereadores.
"Tentativa de barrar fiscalizações"
O vereador Eduardo Moura, que aparece em um dos vídeos que deflagraram a polêmica, diz que respeita o Ministério Público de Pernambuco, mas aponta que as recomendações feitas aos vereadores do Recife foram replicadas de um outro documento emitido pelo órgão em setembro de 2024, destinado aos vereadores de Tamandaré, também envolvidos em fiscalizações controversas no município.
Na visão de Moura, as orientações feitas à capital deveriam conter sugestões específicas para a situação local, e não copiadas de outro documento sem levar em consideração as especificações das visitas feitas no Recife. O JC apurou que pelo menos nove argumentos e quatro recomendações são exatamente iguais nos dois documentos do MPPE.
O vereador também disse que nenhum parlamentar entrou em áreas restritas dos hospitais, como áreas vermelhas, durante as recentes fiscalizações filmadas. Segundo ele, essas recomendações acabaram sendo usadas pela prefeitura como pretexto para tentar barrar o trabalho da oposição.
"Não entro em área vermelha, em alojamento de médicos, em áreas que tem pacientes sendo atendidos, em consultórios. Em nenhum momento há isso. Eu acho que o MPPE peca em não everiguar direito a situação antes de emitir as recomendações. Se tivessem averiguado, iam ver rapidamente que aqueles fatos narrados não eram a verdade", diz ele se referindo à notícia-fato que gerou a recomendação.
Ele também contestou a necessidade de agendamento de fiscalizações. "Para mim, isso não é uma fiscalização, é uma visita para tomar um café. O grande poder da fiscalização é o elemento surpresa. Se eu preciso ligar e marcar para ser daqui a uma semana, dá tempo de maquiar tudo", disparou.
Em relação à suposta cartilha da prefeitura, o vereador disse que a gestão estaria deturpando o documento do MPPE junto aos servidores, ao tentar, segundo ele, fazer com que os funcionários acreditem que as orientações são obrigatórias.
"Não é a primeira vez que a prefeitura faz isso. A prefeitura vem tentando barrar essa ação fiscalizatória dos vereadores porque está se desmascarando muita coisa. Houve a primeira tentativa com o parecer da procuradoria [em janeiro] e agora usou essa recomendação para tentar dizer aos funcionários 'olha, agora está proibida a fiscalização', como se fosse lei. E não é lei. Estão colocando os próprios servidores em situação de descumprimento de lei", declarou.
Em contato com o JC, o vereador Tiago Medina também afirmou que a cartilha teria o objetivo de cercear o trabalho dos parlamentares. "Quando eu vou em uma obra, é para ver se está tudo certo. Se estiver, perfeito. Mas talvez o prefeito esteja se incomodando com isso. Quem quer tentar mudar esse entendimento está fazendo uma ginástica jurídica para passar pano", disparou o vereador do PL.
A reportagem questionou a prefeitura do Recife sobre as acusações da oposição de que estaria tentando impedir as inspeções. Não houve resposta.
Mais discussões na Câmara
Também na última terça (8), o vereador Tadeu Calheiros (MDB) conduziu mais uma reunião da comissão de Saúde da Câmara com entidades médicas para discutir, entre outras coisas, as fiscalizações nas unidades de saúde. Participaram representantes do Cremepe, Coren, Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE) e Conselho Municipal de Saúde.
Ao Jornal do Commercio, Calheiros afirmou que as recomendações do Ministério Público deveriam ser cumpridas, e que as orientações do órgão não podem ser politizadas ou partidarizadas. Na visão dele, os vereadores que vem praticando as fiscalizações, por não serem da área médica, não entendem os riscos à saúde que podem causar aos pacientes.
Como exemplo, ele lembrou de um caso ocorrido na cidade de Felício dos Santos, em Minas Gerais, em fevereiro passado, quando um paciente que estava em estado grave morreu após o vereador Wladimir Canuto (Avante) invadir a sala vermelha de uma Unidade Básica de Saúde e interromper o atendimento.
"Os ambientes de urgência e emergência são tensos por natureza. Para quem não conhece a área, independentemente da intencionalidade, pode gerar um transtorno muito grande. Essas pessoas não sabem o que é uma classificação de risco e, no afã de querer resolver as coisas, se promove um tumulto, uma desorganização. Um profissional que está atendendo um paciente pode ser confrontado, ter que desviar a atenção e isso pode colocar em risco uma pessoa gravemente enferma", apontou.
Com forte atuação na área da saúde, Calheiros disse que, mesmo sendo aliado de João Campos, fiscalizou todas as policlínicas e maternidades do Recife no primeiro mandato, assim como CAPs e outras unidades de saúde da cidade, e que essas visitas resultaram em relatórios que forneceram subsídios estratégicos para indicar melhorias no serviço ao Executivo.
O vereador também afirmou que os vereadores da oposição estariam criando uma narrativa para tentar inverter o sentido das recomendações do Ministério Público. Ele defende que os parlamentares acatem os pedidos, embora reconheça que cada vereador responde pelos seus atos.
"Parlamentares de oposição criam a narrativa de 'querem limitar o nosso trabalho', trazendo para si um protagonismo da situação. Seguramente, há muito o que se melhorar na rede de saúde, mas você não pode colocar em risco pacientes que estão sendo atendidos", opinou o presidente da comissão de Saúde da Câmara.
Calheiros também disse que está trabalhando para indicar proposições legislativas que garantam a atividade fiscalizatória, sem prejudicar servidores e pacientes. Esses marcos legais ainda não estão finalizados e devem ser apresentados mais adiante. "Estamos trabalhando numa construção coletiva de projetos que tragam mais robustez e segurança para todos, sem proteção a governo municipal ou estadual, mas com segurança e responsabilidade", finalizou o vereador.
Nesta sexta-feira (11), o Cremepe se manifestou favoravelmente às recomendações do MPPE, dizendo acompanhar as atuações dos parlamentares com preocupação. "O conselho reitera que qualquer fiscalização em unidades de saúde deve ser feita com responsabilidade, respeito às normas legais e sanitárias, e sempre preservando a dignidade dos pacientes e profissionais envolvidos".