Padre Henrique, 56 anos depois: memória contra o esquecimento
Auxiliar de Dom Hélder na Arquidiocese, Henrique foi sequestrado por uma quadrilha formada por policiais e radicais de extrema direita

No último dia 27 de maio, o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) instalou uma placa nas proximidades do local onde foi assassinado o padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, há 56 anos. O texto gravado nos azulejos da placa diz quem era o padre Henrique e em que circunstâncias se deu a sua morte. Mas a mensagem fundamental transmitida é que a melhor forma de combater os saudosistas dos chamados anos de chumbo é não permitir que crimes hediondos cometidos por agentes da ditadura civil militar de 1964 – como o assassinato de Henrique – caiam no esquecimento.
Auxiliar de Dom Hélder Camara na Arquidiocese de Olinda e Recife, Henrique foi sequestrado na noite de 26 de maio de 1969 por uma quadrilha formada por policiais civis e radicais de extrema direita. Seu corpo foi abandonado no lugar onde foi afixada a placa e que, na época, era um terreno baldio da Cidade Universitária, onde a UFPE estava iniciando a construção dos prédios que formam seu campus.
Nascido em 28 de outubro 1942, primeiro entre os 12 filhos de dona Isaíras e seu José, o futuro padre alfabetizou-se e cursou o ensino fundamental em escolas públicas e fez o ensino médio no colégio Salesiano, estudando à noite porque durante os dias trabalhava como office-boy no City Bank. Falava e escrevia fluentemente em inglês, francês e espanhol, também lia e compreendia grego e hebraico, como informa o resumo biográfico publicado pela Comissão da Verdade pernambucana, em 2013. Ele chegou a passar no vestibular para estudar engenharia, mas acabou ingressando no seminário, primeiro em Olinda, depois na Várzea.
Logo após a sua ordenação foi convidado por Dom Helder Camara a assumir a Pastoral da Juventude, sendo orientador espiritual de jovens universitários e secundaristas. Foi uma escolha ousada, mas que fazia muito sentido. Ninguém mais capaz de compreender o que se passa na mente e no coração dos jovens do que um deles. E Henrique era padre e jovem, vivia o dia a dia da instituição religiosa e, ao mesmo tempo, os ambientes onde os jovens estudavam, se divertiam e experimentavam as angustias do amadurecimento.
Só usava batina em cerimonias de ritual católico. Não esperava que o público ao qual estava destinada sua ação pastoral fosse até ele. Ele ia a sua clientela, onde estivesse. Participava de reuniões em praças, parques, até mesmo na praia. Foi numa espécie de luau, na frente do antigo quartel da PM, em Bairro Novo, Olinda, que ele foi apresentado ao historiador Josemir Camilo, então um estudante que há poucos dias abandonara o seminário. “Eu nunca tinha visto um padre como aquele. Era um cara como qualquer outro, simples, normal, popular. Ele sentado na areia da praia, conversando com simplicidade, explicando as coisas para a gente”, recordou ele.
E, de acordo com os novos modos de ser da Igreja Católica renovada e orientada pelo Concilio Vaticano II, Henrique era padre e cidadão, pároco e trabalhador, atuando como professor em três colégios da cidade: Colégio Marista, Colégio Vera Cruz e Colégio Municipal do Recife.
Noite das noites
Na noite em que foi sequestrado e morto, participara de uma reunião na casa de uma família de classe média do bairro do Parnamirim, na qual conversara com os filhos e filhas dos anfitriões e seus amigos ligados a quatro ou cinco outras famílias convidadas, perfazendo cerca de trinta estudantes. Na saída, encontrou seus algozes que o esperavam em veículo descaracterizado, mas pertencente à polícia. Entre as 23h30 da quarta e as 2h00 da quinta-feira, dia 27 de maio, sofreu torturas tão violentas que é preciso coragem (e estômago) para ler até o fim o laudo da perícia do IML.
Os assassinos amarraram uma corda no pescoço da vítima, ataram-na à traseira da caminhonete que usavam e o arrastaram pelo matagal, rompendo vértebras de sua coluna. Depois o espancaram com porrete de madeira, o esfaquearam e, por fim, o liquidaram com três tiros na cabeça, um deles deflagrado com a arma encostada no crânio. A censura governamental e a autocensura dos próprios veículos de comunicação, locais e nacionais, não impediram que a notícia tivesse impacto global, tendo sido veiculada por jornais como New York Times nos EUA e Le Monde na França.
A motivação dos assassinos
Sabemos que durante a ditadura muitos brasileiros, religiosos, inclusive, sofreram torturas e foram encarcerados ilegalmente, sem direito a defesa. A justificativa para estas repressivas era o “combate ao comunismo e a defesa da propriedade privada”. A operação Bandeirantes, em São Paulo, e os DOI-CODIs, por toda a parte, se estruturaram como centros de tortura e de extermínio de opositores. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) catalogou 434 mortos e desaparecidos, reconhecendo que este número corresponde apenas aos casos documentados. Estimativas mencionam até 8 mil pessoas caçadas e assassinadas por serem vistas, de alguma maneira, como opositoras do regime.
O nome do Padre Henrique está inscrito no cadastro da CNV. Mas, seria ele um adversário do regime? Certamente não era um adepto. Não era, entretanto, um opositor, digamos, típico. Ele não escreveu textos contestatórios, não liderou o movimento de massa. Também não era parlamentar exaltado, muito menos ainda um guerrilheiro. Nunca pôs os pés em Cuba. Ao contrário, estudou no Mount Saint Bernard Seminary, de Dubuque, cidade do conservador estado norte-americano de Iowa. Por que, então, um bando formado por agentes da polícia política pernambucana e radicais de extrema-direita, membros do autodenominado Comitê de Caça aos Comunistas (CCC), tomariam a iniciativa de torturá-lo e matá-lo, como fizeram?
Uma hipótese plausível é que sua culpa, punível com a pena de morte segundo as leis não escritas da ditadura, seria a ligação com Dom Helder. Tendo assumido a Arquidiocese de Olinda e Recife 13 dias depois do golpe de 1964, Dom Helder, que na juventude fora integralista, passou a adotar posições cada vez mais críticas na medida em que o regime ia suprimindo direitos civis, torturando e matando opositores. Enquanto pode lhe foi permitido, Dom Helder viajou o mundo inteiro para denunciar os crimes da ditadura.
Por sua coragem e pela mensagem pacifista que difundia recebeu dezenas de homenagens, incluindo mais de 30 títulos de doutor honoris causa, concedidos por prestigiadas universidades norte-americanas e europeias. Em determinado momento, a ditadura reagiu e pressionou a cúpula da Igreja, no Vaticano, para que restringisse seus movimentos. Numa destas ações políticas e diplomáticas conseguiu impedir que o arcebispo recebesse o Prêmio Nobel da Paz em pelo menos três ocasiões em que foi lançado candidato.
Houve muita preocupação com a possibilidade de que fanáticos extremistas tentassem matá-lo. Não chegaram a tanto, mas em pelo menos três ocasiões foram disparadas rajadas de metralhadora contra a fachada da casa onde Dom Helder morava, na rua das Fronteiras, e contra o prédio da Arquidiocese, na rua do Giriquiti. Uma lista com os nomes de 20 pessoas que seriam assassinadas pelo CCC foi atirada na sede do bispado. Era encabeçada por Padre Henrique e pelo estudante Cândido Pinto, que ficou paraplégico em razão de um atentado sofrido 29 dias antes da morte do padre. Ou seja, atacar essas pessoas foi a maneira que encontraram para atingir Dom Hélder, uma vez que matar o arcebispo produziria consequências imprevisíveis para quem ousasse. Logo, ser amigo do nosso arcebispo colocava a vida de qualquer um em risco.
Uma outra motivação
É possível acrescentar uma segunda motivação. Nos anos 1960, tempo da contestação e da revolução dos costumes, da MPB de protesto e do rock'n'roll, Padre Henrique punha pais e filhos numa sala e os fazia conversar e se entender sobre questões cruciais da vida. Ele enfrentava com leveza a questão do livre arbítrio e da responsabilidade. E atenuava o conflito de gerações treinando para o diálogo e a tolerância. Era, portanto, um inimigo de todo tipo de opressão. Teria muito a fazer nos dias de hoje, uma vez que pais e filhos, jovens e adultos, continuam povoando planetas distantes.
Os historiadores Amarílio Ferreira Jr e Marisa Bittar, numa série de estudos sobre a ação dos governos da ditadura na esfera da educação, relataram que, desde o primeiro momento, os generais e seus ministros se empenharam em desenvolver uma “política educacional organicamente vinculada ao projeto de nação defendido por aqueles que derrubaram o presidente João Goulart”.
Este projeto tinha como pressupostos básicos, ainda segundo os autores, a necessidade de promover um amplo programa de combate ao analfabetismo, no contexto de uma sociedade que se urbanizava, e a decisão de reformar a universidade “a fim de depurá-la de influências ideológicas negativas”, deixando-a sem meios e maneiras de estimular manifestações de pensamento que contrariasse os interesses do regime. Ou seja, cuidava de neutralizar qualquer acesso a conhecimento que implicasse consciência de classe e noção de direitos sociais e políticos, inclusive trabalhistas.
Ora, Padre Henrique era uma pessoa dotada de enorme capacidade de diálogo e tinha muita afinidade com o universo estudantil. Ele inspirava, dialogava, difundia valores contrários aos que a ditadura tentava impor. Não foi por acaso que cerca de 10 mil pessoas acompanharam seu sepultamento. A multidão, formada quase exclusivamente por estudantes secundaristas, caminhou cerca de 10km, da Igreja do Espinheiro ao cemitério da Várzea, carregando faixas contra a ditadura, suprimidas violentamente por policiais. Ele era o que hoje setores da sociedade que se auto identificam como conservadores ou de direita chamam de “doutrinador”.
Quem matou
Não há discussão quanto à identidade dos responsáveis pela morte do padre Henrique. Como registraram documentos sigilosos do governo de então, acessados pelas Comissões da Verdade Estadual e Nacional, o mandante foi o promotor de justiça Bartolomeu Gibson. E os executores foram os policiais civis Rivel Rocha e Humberto Serrano, juntamente com elementos ligados ao CCC, Rogério Matos do Nascimento e um sobrinho de Gibson, Jerônimo Duarte Rodrigues. Destes, apenas Rogério chegou a ser preso, tendo passado cinco anos na cadeia, três na Casa de Detenção do Recife e dois em Itamaracá. Acabou libertado por falta de provas.
É fácil entender porque “não havia provas” que levassem à punição dos assassinos. Em primeiro lugar é preciso lembrar que o maior culpado era, justamente, a maior autoridade em investigação policial no estado, precisamente Bartolomeu Gibson, na época ocupando o cargo de diretor de investigações da Secretaria de Segurança Pública, equivalente ao de Delegado Geral de Polícia Civil na atualidade. Ou seja, cabia a Gibson identificar e prender os matadores do padre que, como sabemos, era ele mesmo e seus comandados...
Outra circunstância decisiva é o fato de este ser um crime cometido por agentes da ditadura para tirar de cena um suposto “subversivo”, segundo o linguajar que utilizavam. O principal artífice do acobertamento foi o próprio ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, intimamente ligado ao CCC, tendo inclusive mantido o principal líder do movimento, Joao Marcos Monteiro Flaquer (1943-1999), ocupando um cargo em seu gabinete. Buzaid liderou a repressão política no mais repressivo período da ditadura, o governo Médici (1969 a 1974). E foi o formulador e o principal executor da censura à imprensa e a todas as atividades culturais, da música popular ao teatro, do cinema à literatura.
*Evaldo Costa é Jornalista