A urgência de um passo atrás
Assassinato brutal de um jovem ativista de direita nos Estados Unidos provoca reações e repercussões, nem todas sensatas, no mundo inteiro
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Será que estamos cruzando o ponto de não retorno, a fronteira da qual não poderemos voltar, abdicando da civilidade que um dia imaginamos ter e quisemos disseminar como valor universal pelo bem da humanidade? Não apenas uma civilidade formal, protocolar, mas o conjunto de ritos e modos em reflexo a uma compreensão igualitária e plural de mundo. Entre a utopia da paz geral e a construção democrática de indivíduos livres, o sonho e a vida prática parecem encolhidos à resignação de pesadelo cotidiano, onde o respeito pelo outro e pelos outros é contingente, desnecessário e, muitas vezes, indesejado.
O direito à liberdade de expressão, grande legado iluminista, fragmentou-se em partículas de ódio que formam uma névoa sobre a civilização contemporânea. Que ameaça tapar a visão humana por muito tempo. E produzir consequências terríveis em escala global, depois de arrasar territórios que servem de morada a milhões de pessoas – como em Gaza ou na Ucrânia. Se o ódio continuar alimentando ódio nas populações nacionais, radicalizadas por dentro e buscando identidades visando inimigos comuns, será grande o risco de colapso generalizado do que um dia chamamos de civilidade.
Na tragédia política que abala os Estados Unidos, o assassinato de Charlie Kirk, jovem aliado do presidente Donald Trump, vem causando reações e repercussões que não se restringem à cena norte-americana. Mas o ódio retroalimentado também é visto em contraponto a um passo atrás cada vez mais urgente. A brutalidade do atentado foi seguida por demonstrações melancólicas, cruéis, de descaso com a vida humana. Por detrás da falsa distância das redes sociais, manifestações de regozijo com a morte de um integrante da extrema direita trumpista ganharam status de notícia, com ameaças explícitas de revide pela Casa Branca.
Precisamos de um passo atrás na banalização da vida e na apologia da violência, em qualquer circunstância. E felizmente isso está ocorrendo, em alguns casos emblemáticos, com retratações públicas depois de postagens infelizes. Como fez o historiador Eduardo Bueno. Após comentários sarcásticos a respeito da morte de Kirk, Bueno reconheceu que se excedeu no que havia dito. Mas quem vem se retratando não escapa da perseguição, liderada pela direita dos EUA com o aval do governo e de Donald Trump. No Brasil, o mesmo tipo de represália vem sendo ensaiado, e possivelmente em outros países. O ódio segue mobilizando mais ódio, mesmo quando vê um odiado recuar.
Se a celebração de um atentado merece a repugnância da civilidade que deveria nos unir, a mesma civilidade poderia impor limites à represália a quem celebrou e pediu desculpas, percebendo o erro cometido. O equilíbrio formado entre o pecado e o perdão, no entanto, não é dado imediatamente. Por isso a importância dos passos para trás, individual e coletivamente, quando o volume de sangue derramado não serve de bastante razão para o silêncio da solidariedade e do pesar pela vida perdida – toda vida. Ou será que cruzamos o ponto de não retorno?