Independência ou impunidade?
Impedir que os parlamentares sejam processados e julgados, formando uma casta de intocáveis, é o propósito de PEC na Câmara dos Deputados

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Um direito inalienável dos parlamentares. É assim que o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, define a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que está para ser votada – e provavelmente aprovada – no plenário. Trata-se de legislação emergencial para impedir que deputados e senadores sejam processados e julgados sem o consentimento prévio do Congresso. Uma verdadeira blindagem contra o Judiciário, permitindo ao Legislativo uma espécie de autonomia que supera a independência para entrar na pura e simples impunidade, uma vez que dependeria do próprio Congresso a análise prévia, sem elementos processuais, de quem pode ou não poder ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo.
Em um país ideal, com poderes em harmonia e representantes ciosos de sua responsabilidade com os anseios e demandas da coletividade, a suposição de cometimento de crime – consolidada em processo que pode resultar em pena – deveria ser vista, não como afronta ou ameaça, mas como vergonha. Ou a independência proclamada abrange a prerrogativa de o parlamentar fazer o que bem entende, sem prestar contas de seus atos, como nas vexatórias emendas parlamentares que sugam bilhões de reais para objetivos obscuros, sem identificação nem pertinência com o orçamento do país?
De acordo com Hugo Motta, certamente externando opinião dominante, o impedimento de um deputado ou senador de ir a julgamento “atende ao espírito da Casa”. Espírito manifesto por vários partidos, em “um sentimento de que a atividade parlamentar precisa ser, não vou dizer melhor protegida, mas melhor dimensionada do ponto de vista legal”, disse. Poderia ter dito “protegida”, pois é a que se refere a PEC, ao evitar ameaças (!) da Justiça. A proteção desvirtuada que libera a prática de ilicitudes por pessoas que escrevem a lei para que outras pessoas respeitem, respondam, e sejam penalizadas se não o fizerem. O Congresso, de tal forma, se assumirá como casta acima da população, à margem da Justiça, intocável pelo Judiciário.
Para o presidente da Câmara dos Deputados, “a instabilidade institucional que temos vivido tem incomodado os parlamentares”. Será que não caberia buscar a raiz da instabilidade nas ações de seus integrantes que dão cabimento a dúvidas, em sua lisura, antes de condenar o Judiciário por cumprir sua função? A PEC da blindagem, como já é conhecida, promove a generalização de que ninguém no Congresso merece ou precisa ser investigado. Nas palavras do próprio Motta: “quando a gente generaliza, a gente tende a errar”. Pois é.
Enquanto o governo Lula faz de conta que não tem nada a ver com isso, a impunidade aprovada tem tudo para ser mais um ingrediente na polarização entre o parlamento e o STF, com grande chance de ser declarada inconstitucional. Sem tocar no assunto, o PT e o presidente da República se unem aos bolsonaristas para promover uma blindagem – que também serve de camuflagem – que beneficia todos os partidos. E põe no esquecimento a nação brasileira em nome da qual os parlamentares estão ali.