Bernard Charlot
Sua mais perene preocupação pedagógica e política estava ligada à educação das classes populares com vista à superação das condições....
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Acaba de falecer o grande e renomado educador francês (residente no Brasil), Bernard Charlot (1944-2025). Uma tristíssima notícia para mim: eu sei que somos todos mortais, mas talvez houvesse algumas exceções. Ele, eu achava que era uma dessas!
Há algumas semanas tive a oportunidade de conversar com ele, via WhatsApp, sobre seu último livro - "Educação ou barbárie". Nossa relação, na verdade, começou em 1999 quando eu lhe pedi para preparar meu pós-doutorado (sobre a obra de Hannah Arendt) na equipe que ele dirigia na Universidade de Paris VIII-Saint Denis (equipe ESCOL, composta por ele mesmo, Elisabeth Bautier e Jean-Yves Rochex). Charlot confessou-me conhecer pouco a obra da autora de "A Condição Humana", mas graças a sua intervenção pude ter contato com a professora Catherine Vallée, grande especialista em Arendt, e com o professor da Universidade de Montpellier, Jean Bernard Paturet, que depois me convidou para ser Professor visitante desta Universidade.
Charlot vinha do meio operário francês, formou-se em filosofia em 1967 e trabalhou como professor na Tunísia. Sua mais perene preocupação pedagógica e política estava ligada à educação das classes populares com vista à superação das condições capitalistas de exploração e domínio, tema que vai aparecer muito claramente em sua obra "A mistificação pedagógica" (1978).
Charlot se situava no interior de um longo debate pedagógico tipicamente francês: o que contrapunha os defensores das "Ciências da Educação" e os "Pedagogistas". Os primeiros vinham da tradição republicana (Jules Ferry) e sociológica (Durkheim): na primeira, prevalecia uma relação pedagógica centrada na figura do professor - detentor do saber - e na "transmissão" de um conhecimento curricularizado e institucionalizado: um modelo "adultocêntrico" e voltado para a formação de um tipo de cidadania que remontava ao século XIX.
A tradição durkheimeana das Ciências da Educação (Durkheim pensava a educação como uma relação exclusivamente intergeracional: os mais velhos educam os mais novos) via a formação pedagógica, nos Centros de Ciências da Educação, como um lugar de pesquisa sobre o fenômeno social educativo, deixando para os Institutos Universitários de Formação de Mestres (IUFM) a formação dos professores, dentro do rigor republicano em que o professor tinha direito, inclusive (e até recentemente!), de bater nos alunos! Já a corrente "pedagogista" tentava romper com essa relação hierarquizada e vertical na pedagogia e apontava para uma relação com o saber voltada para a construção de significados que podemos atribuir a nós mesmo, aos outros e ao mundo onde realizamos nossas experiências. Aqui, não se trata de "aprender" e "repetir" o que os adultos dizem, mas de construir os significados que farão de cada um de nós uma subjetividade autônoma, criativa e crítica (Charlot trabalhou isso em "A relação com o saber").
Em seu último livro, "Educação ou Barbárie" (2020), ele mostra que não há uma pedagogia "contemporânea" equivalente às que foram as pedagogias "Tradicionais" e "Novas": nestas, havia um modelo de Homem a educar, uma proposta "antropológica". Hoje, o objetivo é entrar no mercado, consumir, ser competitivo e atingir metas escolares estabelecidas por organismos internacionais que violam a soberania avaliativa das sociedades: "é o fim do Homo Sapiens", ele dizia!
Morava no Brasil há mais de 20 anos. Recebeu o título de Cidadão Sergipano da Assembleia Legislativa daquele Estado e de Doutor Honoris Causa de nossa UFPE, tendo sido Professor Titular da UFS. Foi enterrado em solo brasileiro, e eu espero que esse "solo" receba um pouco da SEIVA pedagógica e política que ele produziu com suas ideias e que nós, educadores brasileiros, saibamos sorvê-la.
Adeus Charlot...
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE