O lazer que nos falta na cidadania
O lazer é um direito, não um dom ou um privilégio de alguns, quando o descanso fez parte da criação e não é um luxo moderno.......
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O lazer pago como cinema, museus, teatros, viagens e restaurantes, é parte da vida plena, como cultura e descanso, mas não é permitido a toda a população; porque exige recursos melhores e o salário da maioria das pessoas ainda que maior que o mínimo não cobre o básico, o custo de vida crescente e as despesas são todas as de sobrevivência.
Afinal 49,40 milhões de pessoas são atendidas pelo programa "Bolsa Família" que teve em outubro passado um investimento de R$ 12,88 bilhões, com um benefício médio de R$ 683,42 por família, atendendo 18,91 milhões de domicílios em todo o país. O benefício variável familiar alcançou, no último mês, 14,4 milhões de crianças e adolescentes (R$ 670,5 milhões).
Afinal quase 80% das famílias do Brasil estão endividadas; a inadimplência chega a 30,5% onde 13,2% dos inadimplentes não terão condições de satisfazer os seus débitos, um percentual que é o maior da série histórica. A renegociação de dívidas, alterando condições de pagamento originais, criando novos acordos ou os descontos atraentes nos débitos tornam-se práticas comuns.
A necessidade continuada de ajuste nos orçamentos familiares se apresenta cada vez contingencial, porque o problema salarial é o de não acompanhar a dignidade das pessoas, privando-as de um lazer de qualidade.
Essa verdade estrutural desafia a economia; subtrai das famílias o descanso aprazível de quem trabalha e produz, constrói a paz e deve fazer jus ao benefício social do lazer como um direito social previsto na Constituição Brasileira. Assim dispõe a Carta Magna:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015). Bem de ver que o lazer aparece pela primeira vez na Constituição, não figurando nas anteriores.
A seu turno, o art. 217, § 3º, da atual CF apregoa que o direito ao lazer deve ser forma de promoção social, a qual o Poder Público deve obrigatoriamente incentivar.
O lazer é um direito, não um dom ou um privilégio de alguns, quando o descanso fez parte da criação e não é um luxo moderno. Todas as gerações de todos os tempos o exerceram, minimamente.
O lazer que nos falta é o possível que nos é negado pelo não-viver bem, quando desejamos levar os filhos ao cinema, fazer refeições sem contar as moedas, sorrir sem culpa e ver o mundo, em viagens, mesmo que apenas em final de semana e as condições financeiras restritivas apenas permitem (quando permitem) pagar somente os medicamentos. Nunca despesas excedentes.
Vivemos cansados. Corremos atrás do tempo como se ele fosse um inimigo. Contamos os minutos, os prazos, os resultados. Mas esquecemos de contar os sorrisos, os silêncios, os instantes que não têm utilidade, só beleza.
Falta-nos o lazer. O lazer que tece uma vida digna. Não o lazer como mero consumo, distração ou fuga. Falta-nos o lazer como pausa sagrada. Como tempo consagrado a atender as exigências do espírito. Como o sétimo dia da criação, onde Deus descansou, não por cansaço, mas por contemplação. "E Deus viu tudo o que havia feito, e eis que era muito bom." (Gênesis 1:31).
Falta-nos o ócio que restaura. A caminhada sem destino. A leitura sem pressa. O café com uma conversa inteira. Falta-nos o brincar, como as crianças. Elas que vivem o presente com inteireza, sem a ansiedade do depois, sem a cobrança do desempenho. Falta-nos o descanso como propósito.
O Estado não pode restringir o direito ao lazer apenas ao gratuito. A possibilidade de acesso ao lazer pago está diretamente ligada ao direito a uma remuneração digna (art. 7º da CF, inciso IV: salário-mínimo capaz de atender às suas necessidades básicas e às de sua família, incluindo, expressamente, o lazer).
Por evidente que essa previsão constitucional quer referir, em todo rigor, ao lazer pago, exatamente a tempo e modo das preferências de cada um. Direito de distração e de uso de tempo de descanso como bem aprouver o seu titular, efetivado no acesso a uma melhor qualidade de vida. Por via transversa, melhorar também a saúde física e mental.
Assinala a doutrina jurídica: o lazer "serve de essência para a transformação, efetividade e realização de inúmeros outros direitos fundamentais".
O art. 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em Paris, em 10.12.1948, pela Assembleia Geral da ONU, um documento-recomendação para todos os países, prevê o repouso e o lazer como direitos inegáveis do homem. Derivada da 1ª Declaração, de 1789, com a Revolução Francesa, onde o lazer não figurou expressamente, a nova carta de direitos busca influenciar o
direito internacional e as constituições nacionais em todo o mundo. De efeito, a declaração serve como um "ideal global", sob os princípios da igualdade e da não discriminação, onde o previsto direito ao lazer deve ser destinado a todos.
Nessa toada, o direito ao lazer, previsto na Constituição Federal como direito social e em diversas outras normas internacionais, ao ser violado, gera o direito à reparação, em razão do latente dano moral causado, pois diante da eventual privação desse direito torna-se obstado o direito ao melhor convívio social e familiar.
Indispensável que políticas de Estado garantam o lazer por via do lazer pago e que atendam as diferentes opções de cada brasileiro, onde o parque da vida não deva ser apenas o parque público.
Jones Figueirêdo Alves , desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista