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Do preconceito

A tarefa da TIRANIA é impedir que haja qualquer intervenção que altere o desvio do olhar, reproduzindo o PRÉ-CONCEITO. E produzindo outros!

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 26/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 26/08/2025 às 14:45

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1)No ensaio autobiográfico de Kandinsky ("Olhar sobre o passado") ele diz que "certa vez, voltando para casa ao cair da tarde, percebeu na parede um quadro de extraordinária beleza (...). Fiquei paralisado, depois me aproximei desse quadro-mistério onde só via forma e cores e cujo teor me era incompreensível. Encontrei rapidamente a chave do mistério: era um quadro meu que tinha sido dependurado ao contrário. (...) Soube então que os 'objetos' eram prejudiciais a minha pintura".

2)A professora entra na sala e pendura o Mapa Mundi na parede... ao contrário! Um aluno: -"Professora, tá de cabeça pra baixo!". "-Como assim de cabeça pra baixo?, diz a professora. No universo não existe nem em cima nem em baixo, mas se acreditarmos que no hemisfério sul estamos realmente 'em baixo', é porque estamos. E não apenas 'geograficamente'!" (de uma tirinha de Mafalda).

3) "-Basta olhar no telescópio, e me diga o que está vendo, diz Galileu para o Cardeal Barberini. Basta olhar!". "-Não preciso, responde o Cardeal, já sei o que vou ver: está tudo em Aristóteles!" (B. Brecht).

4) Na segunda e terceira situação percebemos que não basta "virar a realidade de cabeça pra baixo" e continuar vendo-a da mesma maneira: naquelas situações dominam o "pré-conceito". Hans Gadamer (1900-2002) dizia que o preconceito é uma espécie de proteção que nos impede de, a cada dia ter de tudo recomeçar. Assim, somos todos preconceituosos, na medida em que nossa "cultura", nossas categorias antecedem nosso olhar sobre as coisas, como se eu já dispusesse de reservas pré-concebidas para codificar o mundo. O problema é quando isto atinge os Outros, atribuindo-lhes características "naturais" que nos impedem de "conhecê-los" e de "reconhecê-los" em sua outridade.

5) A professora intervém para deslocar o olhar do aluno; Galileu não obtém o mesmo resultado. O caso de Kandisky é diferente: foi capaz de ver a si mesmo (sua obra) com outro olhar, porque alguém "inverteu" seu quadro - um deslocamento que os gregos chamavam de "Thaumadzein" (estranhamento ou ad-miração). Era isso o que Sócrates exigia de seus interlocutores: que eles examinassem os conceitos com que orientavam a vida, mas isso só é possível se o OUTRO se interpuser entre meus pré-conceitos (minha cultura, meus pré-juízos) e meu olhar. Não sei se aquele aluno conseguiu; Barberini resistiu a olhar no telescópio (e mandou prender Galileu, que colocou um telescópio "entre" ele e seus pré-conceitos, sabendo que isso teria conseqüências imprevisíveis!).

5) A tarefa da EDUCAÇÃO é se interpor entre o que sabemos (nossos pré-conceitos) que aprendemos de um "saber de experiência feito" (o termo é de Paulo Freire) e aquilo que aparece constantemente no horizonte social, alterando nosso PONTO DE VISTA (lembrando que todo saber produzido pela experiência da vida também está banhado em preconceitos, senão a experiência não faria nenhum sentido para nós).

6) A tarefa da TIRANIA é impedir que haja qualquer intervenção que altere o desvio do olhar, reproduzindo o PRÉ-CONCEITO. E produzindo outros!

Flávio Brayner,  professor Emérito da UFPE.

 

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