Artigo | Notícia

Sobre os fins e os meios

O governo Lula, combina algumas tímidas e parciais reformas, mas concentra as energias despesas discricionárias em mecanismos assistencialistas.

Por SÉRGIO C. BUARQUE Publicado em 06/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 06/08/2025 às 11:23

Clique aqui e escute a matéria

Muita gente ignora e é insensível às desigualdades sociais e à miséria alheia. Poucos brasileiros aceitam reduzir seus privilégios, que são muitos e escandalosos, para enfrentar a pobreza e moderar as desigualdades sociais. Mas não se trata de uma maldade intrínseca, de alguma perversão psicológica ou desvio moral. Tem perversos e imorais sim, que não é a regra. Normalmente, as pessoas normais não desejam a persistência da pobreza e da exclusão social no Brasil, não se alegram nem se regozijam com esta mancha na sociedade brasileira. Desde que não tirem os seus privilégios, gostariam que o Brasil tivesse um elevado padrão de vida e alta qualidade da sociedade, sem pobreza e desigualdades alarmantes. Por outro lado, vale lembrar que várias ideologias políticas propagam a generosidade humana e a solidariedade social que levam à rejeição das condições de vida degradantes dos pobres e miseráveis brasileiros. Tudo isto leva a uma concordância geral em relação aos fins, a busca de uma sociedade com igualdade de oportunidades e de acesso aos bens e serviços públicos, sem esta pobreza degradante e intolerável.

As divergências emergem quando se trata dos meios, o conjunto de políticas, iniciativas e instrumentos adequados e efetivos para realização das mudanças sociais que levam, em algum horizonte de tempo, a esta sociedade desejada e consistente com a generosidade social. Ou seja, o que fazer e como agir para reduzir, de forma consistente e significativa, a pobreza e as desigualdades sociais. Os liberais entendem que o mercado e a liberdade individual levam, naturalmente, à melhor alocação dos investimentos que promovem o crescimento da economia e, como resultado, a equidade social e, portanto, sem necessidade de intervenção do Estado (no limite, aceitam a assistência social para corrigir as falhas do mercado). Fora da esfera política, o cristianismo se concentra na assistência social, forma mais simples e direta de manifestação da generosidade cristã que prepara o terreno para a vida eterna no paraíso, os sofredores e os bondosos se encontrando perante Deus; o segmento católico da Teologia da Libertação, atualmente muito minoritário, defende a luta política e as reformas sociais para a melhoria da sociedade. Os evangélicos neopentecostais, ao contrário, propagam a Teologia da Prosperidade, a busca da melhoria de vida individual dos fiéis na terra (com a ajuda divina, mas esforço próprio) enquanto esperam a volta do Messias.

Socialistas e social-liberais entendem que a pobreza e as desigualdades sociais não podem ser enfrentadas se não forem atacadas as causas estruturais desta mazela social e que, para tanto, é necessária a implementação de reformas sociais lideradas pelo Estado. Não rejeitam o assistencialismo, mas consideram que, sem reformas estruturais, a distribuição de renda com os pobres modera o sofrimento ao tempo em que conserva a pobreza e as desigualdades. O grande problema do Brasil, neste momento, é que poucos políticos e partidos pensam realmente no Brasil, nem se discute num Congresso dominado por negociatas, a definição de estratégias e políticas para o desenvolvimento econômico e social que equacione a pobreza e as desigualdades sociais. E a sociedade brasileira dominada por uma polarização política e fanática que impede a discussão política em torno de prioridades de desenvolvimento.

O governo do presidente Lula da Silva, combina algumas tímidas e parciais reformas, mas concentra as energias e grande parte das despesas discricionárias em mecanismos assistencialistas para atender a 45% da população considerada, pelo governo, vulnerável e dependente da ajuda do Estado para sobreviver. E tenta sobreviver e se preparar para o confronto político-eleitoral do próximo ano com discursos e a ampliação da assistência social, com resultado imediato na moderação do sofrimento, mas consolidando a pobreza e as desigualdades sociais. A generosidade de Lula que busca, em última instância, a melhoria de vida dos brasileiros e a redução da igualdade social, fica comprometida porque os meios utilizados não contribuem, efetivamente, para alcançar estes objetivos. Neste aspecto, o governo reproduz a caridade cristã, principalmente católica, diferente da Teologia da Libertação.

Questionando a nefasta polarização política e buscando os mesmos fins generosos - melhoria de vida dos brasileiros e redução da desigualdade social - algumas tendências políticas e muitos intelectuais insistem na necessidade de investimentos estruturadores que enfrentem as causas da degradante situação social do Brasil, os meios que, de fato, contribuam para alcançar os fins. Em vez de comemorar que os programas sociais, os governos devem atuar para que, num prazo razoável, estes beneficiários da assistência social não necessitem mais da ajuda do Estado (só o Bolsa Família beneficia 20,86 milhões de famílias - 48 milhões de pessoas, se forem consideradas 2,3 pessoas por família). Para isso, são necessários investimentos de peso para o aumento da educação e da qualificação profissional da população, além do aumento da competitividade da economia, que leve ao crescimento econômico, à geração de empregos de qualidade e à elevação da renda.

A transferência de renda tem resultados fluidos e insustentáveis, embora de efeito imediato na carência dos pobres. Como escreveu o dirigente empresarial Eduardo Capobianco, em artigo recente no jornal Estado de São Paulo, "O assistencialismo solidifica a pobreza. O mais grave, porém, é que não acaba com ela, como deveria ser o objetivo". Ao contrário, as reformas estruturais constroem os ativos sociais (pessoas capacitadas e habilitadas para o trabalho) que retiram cidadãos do estado de pobreza. Evidentemente que, para um esforço de grande escala, o Brasil precisa de enfrentamento das limitações e restrições institucionais e financeiras, que remetem ao conflito distributivo na sociedade e com rebatimento forte num Congresso, sem compromisso sério com o Brasil.

No seu ensaio clássico sobre a liberdade, Isaiah Berlin afirma que "Quando existe acordo sobre os fins, os únicos problemas que restam são os referidos aos meios, e estes problemas são técnicos e não políticos" (da versão em espanhol) . Ele queria dizer que, se diversos grupos e partidos que convergem para o mesmo objetivo, digamos a melhoria da qualidade de vida e a redução das desigualdades sociais, não teriam que divergir em relação aos meios porque bastaria uma análise técnica dos instrumentos e políticas adequadas e eficazes. Os homens, políticos e partidos de bem e generosos estamos de acordo em torno dos fins, a sociedade mais justa e com igualdade de oportunidades. Entretanto, a análise técnica costuma ser contaminada por interesses e forças políticas diferenciadas que, em grande medida, estão mais preocupadas com o jogo do poder que com os reais objetivos, empurradas para resultados imediatos e insustentáveis, que para mudanças estruturais que promovem o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

Sérgio Buarque, economista

 

Compartilhe

Tags