O mundo está doente, mas como dói
O mundo doente carece de um novo esforço civilizatório. Para afastar a agressividade humana incontida, o sofrimento humano, a proliferação do ódio

Clique aqui e escute a matéria
O recente acidente aéreo do avião da Air Índia (12.06.25) que matou 260 pessoas, teve o fornecimento de combustível dos seus motores cortado manualmente 29 segundos antes do sinistro impacto em solo, em rápida perda de altitude. Ato suicida de um dos pilotos?
No mesmo dia, desaparece em São Paulo a jovem trans Carmen de Oliveira Alves, ainda não encontrada, suspeitando-se que o seu namorado a teria eliminado para não tornar pública a relação amorosa. Exatamente no Dia dos Namorados. Ato de feminicídio?
As instâncias do feminicídio tem, aliás, os seus vestígios desde datas imemoriais. Bento Teixeira (1561-1600), autor do poema épico Prosopopeia, com estrutura camoniana, marco inicial do Barroco brasileiro, viveu em Pernambuco, onde em Olinda, dedicando-se ao magistério, instalou uma escola (1590). Denunciado ao Tribunal da Inquisição por sua própria esposa, a cristã-velha Filipa Raposa, matou a mulher a facadas em novembro de 1594, por supostas práticas de adultério, refugiando-se no mosteiro de São Bento, onde escreveu os primeiros versos de sua Prosopopeia.
Ano seguinte, foi levado a Lisboa para ser julgado e condenado (Processo n. 5.206), por ser judeu e não pelo feminicídio, morrendo no cárcere. Seu poema foi publicado postumamente (1601).
A escritora Luzilá Gonçalves Ferreira em seu romance histórico "Os rios turvos" (Editora Rocco, 1993), tratou da deterioração do relacionamento amoroso entre Bento Teixeira e sua esposa Filipa Raposa; a vida e os costumes dos judeus migrados para o Brasil colônia e a presença marcante da Inquisição na sociedade colonial.
Será certo, então, que vivemos um novo Tribunal de Inquisição, com seus autos de fé, no sufrágio de posições ortodoxas ou radicais, em detrimento do livre pensar ou da liberdade de expressão?
As redes sociais funcionam como um espaço onde opiniões são rapidamente avaliadas e julgadas. A cultura do "cancelamento", por exemplo, tem sido uma forma moderna de "auto de fé", onde indivíduos são expostos e punidos (social ou profissionalmente) por opiniões que contrariem o discurso dominante.
Demais disso, as ortodoxias contemporâneas estão na atual polarização política e ideológica que alimenta as novas formas de ortodoxia, tanto em discursos progressistas quanto conservadores. Quem se posiciona fora dessas linhas é, por vezes, visto como herege ou traidor, sufocando o livre pensar.
Estamos presenciando um fenômeno social semelhante, em estrutura, ao da Inquisição: punição de dissidências, imposição de conformidades e anulação de espaços de reflexão crítica.
Por que afinal odiamos? A sociedade, a mídia, a educação e a cultura moldam nossos valores e nossos preconceitos. Muitas vezes, o ódio é ensinado, reforçado ou manipulado por ideologias, discursos políticos ou experiências de grupo. A desinformação e o discurso do ódio, em propagação instantânea e de massa, exigem um melhor tratamento jurídico e resposta judiciária.
Por que afinal somos intolerantes? A intolerância surge quando nossas categorias se tornam rígidas demais e não há mais espaço para nuances. Na esfera de manipulações sociais, grupos, líderes ou mídias podem alimentar a intolerância como ferramenta de poder. É fácil criar inimigos, distorcer fatos e gerar medo, porque o ser humano responde com força à ameaça percebida. Ou seja, "a intolerância une as pessoas pelo medo, não pelo afeto."
Em seu "Tratado sobre a Tolerância" (1763) Voltaire (1694-1778) defendeu a importância da tolerância como um dever moral e de interesse comum para uma convivência harmoniosa para a paz social. Disse ele: "O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos".
Pessoas erráticas, isoladas, ressentidas, insidiosas ou dicotômicas, demarcam um território complexo de tons paranoicos ou totalitários, onde as suas razões bastam para definir o que elas entendem como certo, indeclinável e o dever-ser impostergável; contra tudo o que lhes seja contrário, em supressão das diferenças ou de diversidades. Adoecidas de radicalismos, adoecem o mundo.
Noutro giro, a violência é, fundamentalmente, fratricida. No ponto: "o objeto do ódio não é inteiramente externo ao sujeito, é extimo (externo e íntimo); a impressão de que o outro é inteiramente externo a mim é uma produção paranoica do sujeito", afirma M. D. Rosa (2013). O termo "extimo" do psicanalista francês Jacques Lacan busca descrever algo que é singular e ao mesmo tempo excluído. Propagandas de guerra frequentemente desumanizam o inimigo para gerar ódio e justificar a violência.
Pois bem. George Orwell (1903-1950) expressou que "a liberdade é o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir." Talvez nunca tenha sido tão urgente recordar isso. A esse propósito, o filósofo John Rawls (1921-2002) defende um sistema equitativo de regulação de uma sociedade bem-ordenada para que não devamos ser tolerantes com os intolerantes, quando necessário à defesa dos interesses superiores do Estado de Direito e dos direitos das pessoas. Enquanto isso, Hanah Arendt (1989) sublinha que a falta de um pensamento crítico pode levar-nos à banalidade do mal.
O mundo doente carece, portanto, de um novo esforço civilizatório. Para afastar a agressividade humana incontida, o sofrimento humano, a proliferação do ódio, a intolerância política e os desenlaces sociais, torna-se mais urgente amar o teu próximo como a ti mesmo, em inadiável investimento afetivo que possa curá-lo.
Jones Figueirêdo Alves, desembargador Emérito do TJPE. advogado e parecerista