O mau-humor nacional
A militância do politicamente correto tem atuado como uma "vanguarda moral" intolerante e preconceituosa contra qualquer posição divergente.

O humorista Leo Lins foi condenado a mais de 8 anos de prisão e multa de 300 mil reais pelas piadas corrosivas apresentadas num stand up comedy, que foi retirado do ar depois de ter tido três milhões visualizações. Segundo a sentença da juíza Barbara de Lima Iseppi, as piadas "estimulam a propagação de violência verbal na sociedade e fomentam a intolerância". Nunca tinha ouvido falar deste comediante e não poderia avaliar o quanto as suas piadas eram grosseiras nem a sua efetiva capacidade de propagar violência na sociedade. A revista Veja e vários canais virtuais (Metrópole, Brasil Paralelo, Poder 360) publicaram uma seleção das piadas mais fortes, o que me permitiu conhecer a avalanche de bobagens desrespeitosas e sem graça. São piadas fracas, de péssimo gosto, provocando eventuais risos pelo grotesco e pelos exageros linguísticos.
Se fosse julgar pela qualidade do humor, eu o condenaria a ficar diante da televisão assistindo aos programas de Chico Anísio, Jô Soares, Ronald Golias e outros bons humoristas brasileiros, e ler toda a coleção do Pasquim, até aprender a fazer comédia de bom-gosto. As piadas de Léo Lins e a sua condenação deram uma grande contribuição ao debate sobre a liberdade de expressão artística e sobre os limites da interferência judiciária no julgamento dos comediantes. Até que ponto uma juíza tem a autoridade para definir os limites da liberdade de expressão artística, julgar onde acaba o bom-humor e começa o desrespeito aos valores civilizatórios? Até que ponto cabe a uma autoridade judiciária definir o tipo de humor que os brasileiros podem assistir e quais devem ser proibidos, censurados, em outras palavras. A fronteira entre a liberdade de expressão e opinião, asseguradas pela Constituição, e a censura pelo Estado da liberdade individual dos cidadãos é muito tênue e imprecisa. Fronteira mais delicada ainda quando se trata de manifestação artística com atores representando papeis num teatro. O humorista foi condenado pelo que seu personagem falou, que não pode ser confundido com um discurso em palanque ou um pronunciamento político. Além do mais, é muito subjetivo e demasiado especulativo entender que as suas piadas estimulam a violência.
Das piadas que eu li, não gostei nem sequer consegui rir. Mas, como declarou Marcelo Tas, "Não é sobre gostar ou não da piada. Particularmente, não é meu tipo de humor. E daí? O comediante estava no teatro diante de pessoas que escolheram estar ali". No que concorda outro humorista e roteirista Antônio Tabet (Porta dos Fundos): "É um absurdo. Pode-se não achar a menor graça ou até detestar as piadas de Leo Lins, mas condená-lo à prisão por elas é uma insanidade e um desserviço. Espero que essa decisão completamente descabida seja revertida". Isso, sem falar na desproporcionalidade da pena de mais de 8 anos de prisão para um stand up comedy: estão "punindo uma fala com pena mais dura do que estão punindo uma ação criminosa", comentou o advogado André Marsiglia. Para a juíza, as piadas do humorista "certamente estimulam a propagação de violência verbal na sociedade, fomentando a não-aceitação das diferenças e a intolerância, prática nociva e que deve ser desencorajada". No seu entendimento, o crime do humorista está no discurso que poderia, supostamente, vir a provocar ações criminosas.
A questão é muito controversa. Entretanto, a condenação de um humorista pelo que ele expressou no palco do teatro contém elementos claros de censura às manifestações artísticas, constituindo, em última instância, um inibidor do humorismo no Brasil. O combate às diversas formas de preconceito tem reforçado os valores civilizatórios na sociedade brasileira, reduzindo a intolerância e a discriminação contra grupos sociais vulneráveis. No entanto, a militância do politicamente correto tem atuado como uma "vanguarda moral" intolerante e preconceituosa contra qualquer posição divergente na sociedade. E o judiciário, assumindo esta militância, tem tomado decisões que recriam formas de censura à livre manifestação do pensamento e, mais grave ainda, censura da criação artística. A arte deve incomodar, a arte e o humor (levando ao riso) devem ser transgressores para estimular a crítica cultural e social, fomentar o pensamento e o bom debate de ideias, nada indicando que provoquem a violência. Esta militância moral ameaça tornar o Brasil um país muito mal-humorado.
Sérgio C. Buarque, economista