Ivanildo Sampaio: A miséria mora ao lado
É hora de uma reação, em nome da dignidade de homens, mulheres e crianças venezuelanas, que peregrinam pelas ruas do Recife e de outras cidades

Quem caminha ou trafega por alguns bairros, ruas e avenidas consideradas “áreas nobres” do Recife, não pode ficar alheio a uma triste realidade que resiste ao tempo e para a qual o poder público, em todas as instâncias, parece fechar os olhos ou pouco ligar. São as várias famílias de venezuelanos que se abrigam em ruas e avenidas desses bairros, todas elas sujas, quase sempre mal vestidas, com crianças portando cartazes informando sua nacionalidade (“somos venezuelanos”) e esperando a solidariedade de quem passa. Um retrato triste de sua miséria.
Testemunhei recentemente, numa manhã de domingo, essa realidade vergonhosa num bairro nobre da Zona Oeste do Recife, e creio que isso se repita por vários outros subúrbios da capital. Foi constrangedor: enquanto uma mãe, sentada no chão da calçada, com um seio exposto alimentava e consolava resignada um bebê que chorava no seu braço, outra criança, que não deveria ter mais de oito anos, esperava o sinal do trânsito fechar, para bater na porta dos carros parados pedindo ajuda. Lembro que uma boa alma entregou para uma dessas crianças um pacote com alguns mantimentos.
Ela recebeu e agradeceu sorrindo, expondo brevemente os dentes mal cuidados, os cabelos desgrenhados, a roupa gasta e os pés descalços, queimando sobre o calor do asfalto. Noutro ponto, ainda na mesma avenida, outra família de venezuelanos era mais completa – estavam juntos nas proximidades de outro sinal o pai, a mãe e três crianças, nenhuma delas aparentando mais do que 10 anos de idade. Ali, era o pai quem sustentava o cartaz: “Somos venezuelanos. Precisamos de ajuda”.
E como aconteceu no exemplo anterior, uns ajudam com alguma quantia, especialmente pessoas de mais idade, que ainda se utilizam de “dinheiro vivo”, uma vez que as novas tecnologias tornam cada vez mais raro o que os mais idosos denominam de “papel moeda”. A tristeza, a desesperança, a frustração na fisionomia dessa família são tão acentuadas que, quem vê, não consegue ficar indiferente. Por que isso está acontecendo? Qual o futuro dessas crianças, que bem poderiam estar frequentando a escola, praticando esportes ou algum tipo de atividade produtiva, descobrindo em si alguma tendência vinda do berço para a música, a pintura, o artesanato E os pais? Diante dessa indiferença social, não seriam fortes candidatos a ingressar na marginalidade? A roubar, para dar comida aos filhos? A tomar o caminho da violência?
Segundo números oficiais, de janeiro a agosto de 2024, mais de 60 mil venezuelanos se refugiaram no Brasil, entrando pelo estado de Roraima, a maioria fugindo do “companheiro” Nicolás Maduro, um ex-amigo do peito do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Entraram e continuam entrando, principalmente pelo município de Pacaraima; no estado de Roraima, na fronteira entre os dois países. E Boa Vista, capital do estado, “paga a conta” dessa imigração desenfreada. Por exemplo: segundo dados oficiais, 70 por cento dos partos realizados em Boa Vista são de venezuelanas, e dificilmente os pais reconhecem esses filhos. Como na Venezuela não existe um Programa Nacional de Vacinação, o sarampo voltou a aparecer no Brasil, transmitido por venezuelanos, que entram no país via Pacaraima.
Muitos desses imigrantes chegam no Brasil e, quando conseguem algum benefício do governo brasileiro, retornam à Venezuela, mas voltam a cada fim de mês apenas para receber esse benefício. Também há registro da presença em Roraima da mais perigosa facção criminosa da Venezuela, chamada Trem de Aragua. A prostituição também tomou conta de alguns bairros de Boa Vista, a capital do estado, cuja porta é escancarada, entra quem quer e como quer.
Como Boa Vista ficou muito pequena para tanta gente, os venezuelanos se espalham pelo país, incluindo-se Recife, onde sua presença ainda não é perniciosa, mas diante do abandono oficial, poderá ser. Todos sabem que não se pode esperar muito desta gestão do presidente Lula sobre relações externas, mas a questão venezuelana é muito mais um problema social do que qualquer outra coisa. Cortar relações – ou fingir ter cortado – com Nicolás Maduro não isenta o presidente Lula da culpa por mais uma chaga social.
Diante desse quadro, pergunta-se: como as autoridades do nosso país avaliam essa imigração descontrolada? Como acolher esses milhares de famílias que se tornaram mendigos nas ruas do Recife e de outras cidades brasileiras? Como amparar, principalmente as crianças, em escolas, postos de vacinação e centros médicos essa massa imensa de desamparados?
Não será a pequena ajuda de um bom coração, que entrega para uma criança venezuelana um pacote com alguns mantimentos, numa avenida do Recife, que vai resolver o problema. O governo do presidente Lula, que prometeu tanto e fez tão pouco, tem jogado debaixo do tapete essa questão de política interna e de relações com a Venezuela. E, enquanto a aprovação ao seu governo esfarela de ladeira abaixo, ele continua perambulando pelo mundo, na companhia da primeira-dama, que mais atrapalha do que ajuda.
O presidente Lula parece ter medo da reação de Nicolás Maduro, que, embora vendendo caro, ainda abastece com energia do seu país algumas cidades do Extremo Norte, inclusive a capital, Boa Vista.
Mas é hora de uma reação, em nome da dignidade de homens, mulheres e crianças venezuelanas, que peregrinam pelas ruas do Recife e de outras cidades brasileiras.
Ivanildo Sampaio é jornalista.