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Leão XIV: um mês de pontificado entre heranças e esperanças

Leão XIV inicia seu pontificado carregando as esperanças de milhões de fiéis, ciente dos limites e das possibilidades de sua missão.

Por JC Publicado em 03/06/2025 às 0:00 | Atualizado em 03/06/2025 às 10:21

João Carvalho

Encerradas as cerimônias que marcaram sua ascensão ao trono de Pedro, o primeiro mês do pontificado do Papa Leão XIV revela indícios do estilo e das prioridades de seu governo. Sua eleição, celebrada com expectativa por diversos setores da Igreja Católica, ocorreu num momento particularmente sensível: enquanto crescem as pressões sociais, políticas e espirituais do mundo contemporâneo, as estruturas internas da própria Igreja enfrentam tensões que há muito tempo exigem renovação.

Nascido nos Estados Unidos, mas com trajetória construída no campo pastoral na América Latina, mais especificamente no Peru, Leão XIV representa um perfil construído a partir de diversas vivências e, por isso mesmo, estratégica. Carrega consigo a marca da atuação junto às comunidades de base, o que o aproxima das teologias voltadas para os pobres e para a justiça social. Ao mesmo tempo, como membro da ordem dos agostinianos, traz no repertório espiritual um perfil mais contemplativo e conservador em relação a temas como o celibato clerical e a ordenação de mulheres.

Ao adotar o nome Leão, o novo Papa faz uma ponte direta com Leão XIII, figura histórica que lançou as bases da Doutrina Social da Igreja no final do século XIX. O gesto não é apenas simbólico, mas sinaliza continuidade com uma tradição de envolvimento com os mais vulneráveis. Uma postura que se aprofundou sob o pontificado de Francisco e que agora parece encontrar novo fôlego.

Segundo Gilbraz Aragão, doutor em Ciências da Religião e professor da Universidade Católica de Pernambuco, a Igreja Católica atravessa um momento de transição profundo e delicado. A crescente secularização, em meio ao surgimento de vivências religiosas mais abertas, especialmente entre os jovens, exige da Igreja respostas criativas e estruturais. Nos Estados Unidos, mais de 40% dos jovens se declaram sem religião. No Brasil, em grandes capitais, o índice já passa dos 30%. Não se trata de rejeição à fé, mas de uma busca por espiritualidade fora das formas tradicionais de organização religiosa.

A eleição de Leão XIV parece responder a esse contexto. Seu perfil combina o compromisso social e pastoral que dialoga com os marginalizados com a firmeza institucional que agrada setores mais tradicionais. Essa tentativa de conciliação não é simples. Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja experimenta um vai-e-vem histórico entre abertura e retração. Em muitos casos, os avanços em inclusão e diálogo foram interpretados como ameaça à tradição, gerando reações que ainda aparecem com força.

Leão XIV já indicou que pretende dar continuidade às reformas iniciadas por Francisco, sobretudo no que diz respeito se refere à participação mais ampla de fiéis, incluindo leigos e mulheres, nos processos decisórios da Igreja, é uma das chaves do novo tempo. O Papa também tem reiterado a importância do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, defendendo pontes em vez de muros em tempos de polarização crescente.

Ainda assim, seu estilo é diferente. Mais discreto e protocolar do que seu antecessor, Leão XIV opta por gestos contidos, mas carrega em sua história pessoal e pastoral a densidade necessária para avançar em pautas complexas. Sua ligação com a América Latina e sua convivência com a realidade das periferias o credenciam a compreender, por dentro, as urgências de uma Igreja que quer ser próxima, presente e atuante.

Em um cenário global marcado por guerras, colapsos climáticos, fluxos migratórios e crise da democracia, a figura do Papa segue sendo um símbolo de autoridade moral. Francisco compreendeu isso como poucos e transformou o pontificado numa plataforma de denúncia e de esperança. Mesmo seus críticos reconheceram a importância de sua voz no debate público. Líderes mundiais, inclusive os que não concordam plenamente com ele, compareceram a seus encontros, ouviram suas mensagens e, muitas vezes, se viram obrigados a responder às suas palavras.

Leão XIV herda não apenas o peso dessa figura pública, mas também a responsabilidade de conduzir a Igreja num período de transformações profundas na civilização. Questões como a inclusão das mulheres em ministérios, a flexibilização do celibato, o enfrentamento dos abusos sexuais e a democratização das organização interna da Igreja continuam a desafiar a instituição. Seu posicionamento nesses temas será observado de perto, tanto por católicos quanto por não católicos.

O novo Papa também começa seu pontificado em meio a uma crescente descentralização do catolicismo. O eixo da fé já não está mais na Europa, onde o número de fiéis diminui rapidamente, mas nas Américas, na África e em algumas regiões da Ásia. Ao ter raízes nos Estados Unidos e formação pastoral na América do Sul, Leão XIV simboliza essa nova geografia da fé. O cristianismo do século XXI será, cada vez mais, global, plural e marcado por realidades culturais diversas. O Vaticano precisará reconhecer isso em sua estrutura e atuação.

Mais do que uma figura de equilíbrio, o Papa Leão XIV pode ser o articulador de uma nova fase da Igreja: uma etapa em que tradição e modernidade não estejam em conflito, mas em conversa. Sua missão não será fácil. Há forças organizadas, dentro e fora da instituição, que resistem às mudanças. Mas há também uma base viva e vibrante de fiéis que espera por uma Igreja mais aberta, humana e coerente com o Evangelho que declara.

Seu primeiro mês deixa claro que o caminho será de construção lenta e firme. Os sinais emitidos até aqui indicam continuidade com adaptação, prudência com escuta e tradição com sensibilidade pastoral. O tempo dirá se essa combinação será suficiente para atender às expectativas de um mundo que pede mais compaixão, mais justiça e mais coerência entre fé e prática.

Leão XIV inicia seu pontificado carregando as esperanças de milhões de fiéis, ciente dos limites e das possibilidades de sua missão. Diante das encruzilhadas do presente, seu desafio maior será manter acesa a luz da fé sem fechar os olhos para a realidade. E, sobretudo, mostrar que a Igreja ainda tem muito a dizer e a fazer, em um mundo que continua buscando sentido.

João Carvalho, jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco

 

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