OPINIÃO | Notícia

Gustavo Krause: a Caatinga vive

Somente na Caatinga é que a natureza parece brincar de beleza e tragédia; de vida e morte. Tudo acontece quando o sol queima (e queima muito)...

Por GUSTAVO KRAUSE Publicado em 01/06/2025 às 7:00

A “Ilha de Vera Cruz” foi o primeiro nome dado, ao nosso país pelo comandante da esquadra, Pedro Álvares Cabral, na aventura dos descobrimentos de novos mundos no além-mar. O equívoco durou pouco. Não era uma ilha. Era parte de um continente que passou a ser chamado de “Terra de Santa Cruz” o que mantinha o tom religioso da empreitada colonizadora.

No entanto, a partir de 1503, madeira de “cor abrasada e vermelha que tinge pano”, o Pau-Brasil, madeira conhecida na Europa e comercialmente valiosa, deu nome à terra descoberta e tornou-se o principal produto explorado pelos portugueses sob o protesto indignado de Frei Vicente do Salvador. A colonização tinha, também, a missão evangelizadora expressa na cruz dos templários estampada nas caravelas.

No entanto, o ato fundador do Brasil, pelo menos no nome de batismo, selava um pacto na origem e no destino com a natureza de beleza deslumbrante e na oferta de uma riqueza aparentemente inesgotável.

Digo “aparentemente inesgotável” porque na relação coexistiam duas visões: a visão humanista impregnada da cultura renascentista que percebia na expansão de novas fronteiras a ampliação dos limites do conhecimento e estimulava o imaginário edênico dos pensadores; e a visão utilitária movida pelo interesse mercantilista que buscava expandir o comércio e abrir novos espaços de exploração monopolística pelos estados nacionais emergentes.

Vem do ato fundador a relação ambivalente com a natureza. De uma parte, a exploração predatória determinada pela cartilha mercantilista. De outra, o impacto do deslumbramento dos colonizadores com a natureza brasileira levou os primeiros de cronistas a ressaltarem um “paraíso terreal”, entrecortado de “águas infindas”.

Já na visão primeira, em Porto Seguro, os colonizadores se depararam com sua majestade a Mata Atlântica, uma espécie de tapete verde estendido ao mar tão agredida e degradada que Drummond definiu sua sofrida existência como “uma doação ilimitada a uma eterna ingratidão”. A sofrida existência da Mata Atlântica é o objetivo de uma obra de autoria de Warren Dean (1932-1994) A Ferro e Fogo: a História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira (Ed. Companhia das Letras. São Paulo, 1996).

Mal sabia a expedição cabralina que aquele espetáculo para os olhos era, apenas, pedaço de um inimaginável mosaico.

Para o Norte, a gigantesca Floresta Amazônica oferece ao mundo serviços ecológicos vitais para o equilíbrio ambiental e abriga o maior tesouro da humanidade – a biodiversidade – fonte inesgotável de respostas aos enigmas da fome e das doenças ainda não satisfatoriamente decifrados pelo engenho humano.

Na direção do oeste, bem no coração do Brasil, “pequenas árvores de troncos torcidos e recurvados, de folhas grossas, esparsas em meio a uma vegetação rala e rasteira”, escondem uma bênção da natureza, o Cerrado, um generoso fornecedor da biodiversidade e de nascentes onde brotam outra riqueza cada dia mais escassa e crítica: a água.

E por falar em água, o paraíso das águas vem de um ecossistema singular que é o Pantanal. Trata-se de um fragílimo artesanato da natureza, revelador de um espetáculo único que, em certos momentos, céu, terra e águas juntos, em planícies superpostas, parecem uma coisa só.

Em todos estes cenários a beleza é obra da criação; a tragédia é obra de destruição humana.

Somente na Caatinga é que a natureza parece brincar de beleza e tragédia; de vida e morte. Tudo acontece quando o sol queima (e queima muito) e quando chove (e chove pouco).

E diferente de tudo, ouve-se o grito da terra associado ao grito dos pobres. É o semiárido mais populoso do planeta.

Diferente porque é um bioma único do mundo. “A mata branca” é um tipo de palidez que a língua tupi revela. Embranquece, quase desfalece. Pois bem, representa cerca de 10% do território brasileiro; estima-se que abriga uma flora entre 2 a 3 mil espécies; nela habitam 1307 espécies de animais (327 endêmicas), mais de uma centena de mamíferos, cerca de mil aves e mais de 1220 espécies de animais vertebrados.

O quadro desanimador não desaparece. Onde eram rios temporários, ficam rugas como se um rosto envelhecesse da noite para o dia; onde era o verde das folhas de jurema, da camaratuba e do mororó, sobram o xique-xique, a palmatória e o mandacaru, ou seja, sobram espinhos como se fossem armas de uma luta pela sobrevivência até quando chuvas minguadas replantam esperanças fazendo a festa do sapo-cururu, da asa branca, da cotia, do preá, do mocó, do tatupeba, numa “explosão de vida”.

Neste sentido a degradação da natureza chegou ao ponto crítico revelado pela ameaça climática: questão vital para a agenda global. O Brasil tem responsabilidade e protagonismo estratégicos para enfrentar, solidariamente, o desafio de mudar o rumo civilizatório. Este ano sediará, no Pará, a COP30 (30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – UNFCCC).

Com efeito, a notícia boa é o Relatório Anual de Desmatamento (RAD do MapBiomas), divulgado no dia 15 de maio, que revela uma redução de 32,4% da área desmatada em 2024/2023; a má notícia é o grave risco da “flexibilização” das normas de licenciamento ambiental.

No caso da Caatinga (redução de 13,4%), a gestão estadual, de forma articulada, cooperativa e eficiente finaliza o processo de criação de seis unidade de conservação no Semiárido Pernambucano (Serra da Matinha, Serra do Cabo Quebrado, Serra Comprida, Serra dos Almirantes, Serra da Siriema, Serra Verde) abrangendo 14 municípios. Importante ressaltar que o projeto é financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), sob a coordenação do MMA, tem o BID como agência implementadora, está sendo tocado pelo FUNBIO e executado pelo Cepan, em parceria com a Semas-PE e a CPRH.

Enquanto isso, a Caatinga, forte, vive.

PS. Salve o dia 05 de junho, dia mundial do Meio Ambiente!

Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco

 


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