Dayse de Vasconcelos Mayer: A felicidade existe?
Na rua Amélia, as árvores se dobram até o outro lado da calçada até se tocarem num beijo afável ou acariciante. Triste é que ninguém vê o que eu vejo

Despertei com um barulho subtil em meu quarto. Olhei ao redor e percebi na junção do teto com a parede um pequeno inseto de nome esperança. Quando eu era pequena, minha avó repetia que o artrópode era presságio de boas notícias e sorte. Lembrei-me dessa advertência e mantive a atenção esperta no bichinho verde. Fui seguindo o caminho do inseto com os olhos grudados no teto. De súbito, percebi uma irrupção de felicidade cochando o meu peito. Fazia um ruído afável e acolhedor.
Descobri que estar feliz é um sentimento que transcende a forma física. Independe da presença de objetos, animais e pessoas. Recusa ou rejeita a presença de palavras. Os vocábulos estão vivos e rumorosos apenas em nossa cabeças. Eles dizem tudo e até anunciam em nossos pensamentos pequenos sons quase imperceptíveis: whack, smack, ric-tec, zzz, snif-snif, ploft.
Naquela manhã eu havia acordado com o sentimento de que tudo valia a pena. As coisas do meu universo poderiam ser diminutas, mas a alegria era sempre profusa. Será que eu estou em fase de explosão hormonal: a dopamina, serotonina e ocitocina? Comecei a gargalhar em sossego sobre as minhas excentricidades, mas a emoção aumentava sempre e sempre, tudo sem o ruído do silêncio. Senti que o estado d’alma poderia se transformar, repentinamente, numa nuvem branca como a neve e que poderia até se converter em gelo. Era a ideia de Nietzsche: a felicidade como algo frágil volátil, mutável ou inconstante. Imagino que sempre pensei dessa maneira. Por isso jamais utilizei o verbo ser. Adotei a vida inteira o estar. Ninguém pode ser feliz, pode estar feliz porque a felicidade é uma impermanência. Tudo depende de insucessos ou fracassos da vida. Mesmo quando estamos felizes, o sentimento pode se demudar naquilo que Freud chamou de “ruined by sucess”. Na concretização dos nossos desejos, somos perseguidos por um medo irracional. Então passarmos da alegria à angústia, do entusiasmo ao desalento. É possível que mesmo nos estados de felicidade, exista um restolho, um vácuo a ser preenchido. Nesse caso, o que chamamos felicidade é um complexo e não um completo.
Nesse apanhado de presunções, observei atenta as cortinas da janela aberta do meu quarto e percebi que a aragem empurrava o tecido diáfano e transluzente atiçando os meus cabelos. Na realidade, eu desejava caçoar do vento. Enfim, olhei o relógio e o tempo havia corrido depressa sem que eu deixasse o quarto. Rapidamente, decidi calçar os chinelos em renda “renaissance” e tecido branco e comecei a vaguear pela casa. Notei um móvel antigo que havia pertencido a um familiar que partiu há mais de 100 anos. Percebi uma fileira de chávenas douradas e empoeiradas. Inferi que na vida tudo é mesmo poeira. E é assim que nos convertemos na velhice. Por vezes esquecemos de olhar para o lado direito ou esquerdo. Seguimos em frente esquecendo a sujidade que mal aparece diante dos nossos olhos. A verdade é que só identificamos os defeitos no momento em que estamos tristes. Quando estamos felizes tudo é delirante e arrebatador. Os gregos chamavam de “charis”. Na mitologia grega, charis é uma das charitas que acentuam o brilho nos olhos, expõem a beleza do corpo e aumentam a capacidade de ser cobiçada. Nas árvores isso também acontece. Basta olhar pela janela. Logo perceberemos as árvores como se fossem divindades com seus galhos verdes e copas vigorosas e pendentes.
Na rua Amélia, as árvores se dobram até o outro lado da calçada até se tocarem num beijo afável ou acariciante. Triste é que ninguém vê o que eu vejo, faz o que eu faço e sente o que sinto. E tudo isso acontece em pleno silêncio. Afinal, a felicidade é a única emoção que prescinde de vocábulos e frases. Apenas os olhos dizem tudo. Ele fica luminoso e enfeitiçado diante das rosas num jardim. Nem mesmo as abelhas ou borboletas, que circundam entre as pétalas, fazem qualquer ruído. Tudo é silêncio intenso. A felicidade é isso: remanso, serenidade, sossego, alegria, exaltação....
Encontro-me, e não sei a razão, na certeza de que a felicidade pode findar a qualquer instante. Mas, enquanto ela não for embora eu vou cantando – sempre em silêncio. E me abandono sentindo o cheiro forte da maçã que está no forno com o pau-de-canela e açúcar inundando a cozinha. Abro a portinhola do meu escritório e vejo as pastas bolorentas de matérias antigas dos jornais. Elas foram poupadas da tecnologia. Penso nos açougueiros que não têm como fazer embrulhos. Dizem que a natureza agradece, a cada minuto, o não uso do plástico. Mas os mercados trocaram o jornal pelo plástico. A meio dessas conjecturas, retorno ao meu quarto e volto a adormecer. Quero abraçar todas as pessoas que agora ingressam em meu sonho: brancos, negros, bêbados, sem-teto, crianças, prostitutas, doentes da alma e do corpo. Afinal, minhas mãos se converteram em carícias vaporosas e de uma leveza singular e invulgar.
No sonho, eu vejo um indivíduo distante. Ele é a minha esperança. Preciso dizer ao homem sem rosto que existe uma canção silenciosa feita apenas para ele. Volto a sonhar e perceber triste que não agradeci ao Pai: pelo orvalho do amanhecer e pelo sol que me concede vida, pelo néctar doce das flores que os insetos buscam com voracidade, pela lua que ilumina o céu, pelas nuvens, pelos rios, pela água da chuva que rega as plantas e desliza em meus cabelos muito brancos e compridos.
Preciso dizer, antes de acordar, que transporto em mim um segredo que jamais revelarei e um mistério que não ousarei confessar. Nos instantes de felicidade intermitente eu não esqueço de me perguntar quem é aquele homem que se converteu numa sombra. Ele não percebeu que sou Gradiva, a figura mitológica, que alucina a todos que a evocam. Eu sou a mulher que não pede, apenas concede ou dá. Eu sou engenho e invenção capaz de produzir feridas amorosas que logo saram com um simples toque de doçura. Eu sou, enfim, um ser dual: tenho uma parte boa, carinhosa, afável, estável, melodiosa. Tenho outra insensata, carregada de volúpia, sensualidade, luxúria. Meu sentimento é de posse corrosiva. Por mágoa ou por sexo enfermo eu desejo realizar a contração do amor com a paixão. Algo impossível. Afinal, estou dormindo e o sono dilacera a sensualidade, a lógica do desejo, a genitalidade. Preciso acordar de novo, de novo. Desejo ser uma só e poder amar sem temor, sem pecado e sem blasfêmia a percorrer meus lábios. Preciso unir o amor e a paixão. E se houver um dia qualquer em que eu precise renunciar à paixão e ficar unicamente com o amor? Estarei dormido ou acordada?
Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.