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Meu quintal ainda me pertence

O Brasil, como potência média regional, precisa estar consciente das armadilhas lançadas ao longo do caminho......................

Por OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS Publicado em 31/05/2025 às 0:00 | Atualizado em 01/06/2025 às 17:44

Pequeno, minha família mudou-se de Recife para Aracaju, passando a morar na casa de minha avó. A residência era modesta, construída em um terreno estreito e profundo.

Um longo corredor ligava a porta principal de ferro, voltada para a rua, a uma porta de madeira que se abria para o quintal.

Eu tinha pouco mais de cinco anos. Aquele quintal era imenso. As árvores eram gigantescas, as folhagens, densas. Parecia-me uma floresta dos filmes de Tarzan.

Era o meu espaço de aprendizado empírico. Ali, brincava após os deveres de casa. Ali, me escondia para escapar das chineladas. Ali, eu mandava em tudo.

O tempo passou e o sentimento de pertencimento àquele "imenso território" foi-se esvaindo.

No entanto, a expressão "meu quintal" ainda se confunde, dentro de mim, com a sensação de ser dono de um pedaço de terra onde quem manda sou eu.

Hoje, incorporo que esta terra, o Brasil, é meu quintal, assim como o foi aquele da casa de minha avó. Ela guarda imensas riquezas, preserva tradições e valores, enquanto abriga, há cinco séculos, os povos que a consolidaram.

Em recente entrevista, o atual Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Peter Hegseth, afirmou que seu país precisa "recuperar seu quintal" — uma alusão aos países ao sul do Rio Grande.

A declaração de Hegseth atropela o conceito de soberania, ofendendo jocosamente o princípio de não intervenção recomendado na Carta das Nações Unidas.

O discurso não é novo.

Desde o século XIX, os EUA buscam consolidar sua influência na América Latina, sob pretextos como "proteção" ou "garantia" de estabilidade regional.

Alguns exemplos para fixar a tese: a Doutrina Monroe (1823), o Destino Manifesto (1846), a Política do Big Stick (início do século XX), a Política da Boa Vizinhança (década de 1930), a Doutrina Truman (1947), sanções e pressões econômicas e diplomáticas pós-Guerra Fria.

A história — sempre ela — há de servir como baliza para orientar nossas reações.

Em meu trabalho faço análises de conjuntura tanto regional como mundial. Com frequência, uso os ensinamentos do "Diálogo Meliano" (História da Guerra do Peloponeso, escrita por Tucídides), um episódio em que os habitantes de Melos tentaram convencer Atenas de que a justiça, o bom senso e suas alianças com Esparta os protegeriam das intenções hostis daquela cidade-estado.

Um enviado ateniense, encorajado pela poderosa esquadra ancorada ao largo da ilha, respondeu:

— O justo só prevalece quando os interesses de ambos os lados coincidem. Os fortes exercem o poder e os fracos se submetem.

Em seguida, arrasaram Melos, mataram todos os homens e escravizaram crianças e mulheres.

A guerra deixou lições e transformou profundamente o mundo grego, resultando na decadência de Atenas, na efêmera hegemonia de Esparta e no enfraquecimento geral das pólis.

Como reflexo, a guerra permitiu a ascensão do Império Macedônico, tornando-o, então, a potência dominante na Grécia Antiga.

O mundo vive uma Guerra do Peloponeso contemporânea. Os Estados modernos se assemelham às cidades do mundo grego, com cada um buscando alinhamentos às Atenas e Espartas do momento. E alguns se confundem com antigos melianos, ingênuos defensores de uma pomba da paz de asas quebradas.

Racionalmente, não se pode acreditar em pombas da paz de asas quebradas para a solução de desafios à soberania de Estados.

O Brasil, como uma importante potência média regional, com aspirações justas de crescer e fortalecer-se, precisa estar consciente das armadilhas lançadas ao longo do caminho.

Logo, seu povo e suas lideranças devem preparar-se para os confrontos que se avizinham, aferindo suas possibilidades, construindo alternativas ao maniqueísmo "Atenas" versus "Esparta", atentando ao surgimento de uma "Macedônia" e definindo aos antagonistas seus limites de tolerância contra afrontas aos objetivos da nação.

Por ora, a esquadra "ateniense" não dá sinais de que lançará âncoras em nossas costas, os "espartanos" têm lá seus problemas e os "macedônios" ainda não se afirmaram.

Apesar disso, é perigoso crer apenas em discursos como instrumento de defesa de nosso quintal. Mais uma vez devemos lembrar: "A história não é uma cadeia de eventos inevitáveis, mas um conjunto de possibilidades que dependem das decisões que tomamos no presente" (Yuval Harari).

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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