OPINIÃO | Notícia

José Paulo Cavalcanti: Anistia

Esse tema da anistia voltou a debate quando estávamos na Comissão Nacional da Verdade. Durante os trabalhos, discutimos a questão da punição...

Por JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHOjp@jpc.com.br Publicado em 30/05/2025 às 7:00

Lisboa. Início dos anos (19)70, na mais dura fase da Ditadura Militar (de 1964), comprei um pequeno veleiro e fui registrar na Capitania dos Portos (era, e continua sendo, obrigatório). O nome que escolhi foi “Ann’s Tear”. Traduzindo, a “Lágrima de Ana”. Só que lia-se Anistia. Para que da praia se pudesse vê-lo, todo branco, nas águas de um mar com mais fraternidade.

Na véspera do registro, por precaução, fui conferir no dicionário. E só então percebi que “tear”, além de “lágrima”, também pode ser traduzido por “buraco”. Assim, dependendo de quem lesse, poderia ser “Lágrima de Ana” ou “Buraco de Ana”. Para evitar esse risco registrei só como “Ann’s Tia”. Mistura sem muita inspiração de inglês e português, a “Tia de Ana”. Mas, na praia, todos entendiam a mensagem. E apreciavam o navegar doce daquele Anistia.

Voltemos ao presente. Segundo o senador Eduardo Girão (Novo-CE), desde 1822, nossa História registra mais de oitenta anistias no Brasil. Entre elas de sequestradores, assaltantes e assassinos. Lembro de uma. O caso se deu de 2 a 4/12/1959, passando a ser conhecido como a Revolta de Aragarças. Uma tentativa de golpe feita por oficiais da Aeronáutica e do Exército para derrubar o governo JK. Foi quando tivemos o primeiro sequestro de avião no Brasil, um Constellation de Panair, que decolou do Santos Dumond (Rio) na direção de Manaus e sobrevoava Barreiros (na Bahia). Levava 46 pessoas (38 passageiros). A revolta deu em nada. Que nem a ONU, nem o Exército, nem a opinião pública, ninguém apoiou, levando os revoltosos a fugir para países vizinhos.

Sufocado o movimento, mais tarde, JK tratou de providenciar anistia para os revoltosos. Nosso padrinho de casamento, encontrávamos com ele sempre em seu apartamento no Rio. E, um dia, conversei sobre esse episódio. Então relatou fato curioso. Disse que, quando foi assinar o documento da anistia, os cabelos de seu braço levantaram. Como o pelo dos gatos, quando têm medo. Como se fosse um prenúncio. Não assinou e devolveu a caneta à mesa. Os cabelos voltaram ao normal. Pegou de novo a caneta e, novamente, os cabelos levantaram. Era como uma antevisão do futuro.

Assinou, assim mesmo, por pressão dos amigos. Para poucos anos depois, logo ao início da Ditadura de 1964, ver seu mandato de Senador ser cassado e perder os direitos políticos (em 08/06/1964). Por mãos de alguns dos anistiados por ele, em Aragarças, que foram voz ativa nessa violência. Perguntei se estava arrependido de ter assinado a tal anistia, respondeu que não. Segundo ele, o Brasil precisava mesmo se reconciliar.

Esse tema da anistia voltou a debate quando estávamos na Comissão Nacional da Verdade. Durante os trabalhos, discutimos a questão de punir os responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos forçados de 1964. Antes de seguir, bom lembrar que precederam no mundo, a nossa Comissão Nacional da Verdade brasileira, outras 40 comissões semelhantes. Mais notória sendo a da África do Sul, criada em 1994 por Nelson Mandela e sob direção de Desmond Tutu um arcebispo da Igreja Anglicana que foi prêmio Nobel da Paz dez anos antes.

E nenhuma dessas 40 comissões anteriores foi criada com o fim específico de fazer justiça. Ou de por, na cadeia, os responsáveis por torturas e mortes. A ideia era, basicamente, só recontar a história do que se passou; e, também, preparar as bases para uma transição menos traumática, em cada país, entre os horrores de antes e os novos tempos.

Tanto que a já referida Comissão da África do Sul tinha só três subcomissões: violação a direitos, reparação e anistia. O que se buscava, sobretudo, era o conhecimento da verdade. Aquilo que aconteceu, de fato, naquele passado triste.. Para quem confessasse o que fez, sendo garantida anistia automática. Valendo notar que não houve uma única prisão, no curso ou por conta (depois) de todas essas outras comissões, em nenhum país.

Com relação à anistia ampla e recíproca, concedida no Brasil aos dois lados naquele tempo (permitindo voltar ao Brasil Arraes, Brizola e outros), é comum dizer que a Lei da Anistia (nº 6.683) foi votada, em 28 de agosto de 1979, por pressão dos militares. Sobretudo para proteção deles próprios. Com certeza foi assim. Ocorre que houve outra Lei da Anistia, posterior no tempo, da qual pouco se fala. Como se nunca tivesse existido.

Foi a única exigência feita pelos militares, nas negociações da transição. Para beneficiar os responsáveis pelo RioCentro, que se deu na noite de 30 de abril de 1981. Posterior, portanto, à primeira lei (que é de 1979). Tancredo concordou. Por ser algo necessário, para o país. Morto, coube a Sarney honrar seu compromisso. O que foi feito com a Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985 (art. 4º, com sete parágrafos). Votada por um Congresso livre de quaisquer pressões. O mesmo que elegeu Tancredo, opositor civil ao Regime Militar. Uma regra não apenas mais recente, no tempo, como também de nível superior ao das leis ordinárias, posto que passou a constar da própria Constituição.

Membros de nossa Comissão (menos eu) pretenderam recusar dita anistia, para que todos os responsáveis ainda vivos (bem poucos) fossem julgados, condenados e presos. Na votação das “Recomendações”, na Comissão Nacional da Verdade, votei a favor dela. Textualmente, assim ficou registrado: “Baseado nas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, e com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusar, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese”. Em razão do que nenhum dos envolvidos, de parte a parte, poderá mais ser punido. A menos que o Supremo modifique seu entendimento. A reação da imprensa foi de amplo apoio a essa posição de reconhecer e validar a anistia. Com Editoriais de todos os grandes jornais do país, a favor.

Essa minha posição, a favor da anistia, não é portanto nova. Vem de bem antes. O Brasil, hoje, é outro. Nossas prioridades, outras. Mas somos um país conturbado. E, sobretudo, precisamos de paz. Algo cada vez mais difícil de acontecer. Que o governo politiza a questão, como um meio de impedir que adversários sejam candidatos. E aqueles que deveriam responder por isso mais que todos, no Supremo, são os que mais promovem a radicalização e o confronto. Como se tivessem um ódio ancestral, no coração; sangue, nos olhos; e falta de qualquer piedade, roendo seus corpos. O que é muito ruim.

Por isso, amigo leitor, reitero aqui uma ideia simples. A de que num país fraturado, como o nosso, nada é mais importante, necessário e urgente, que promover a paz social entre os brasileiros. Com uma grande anistia. Política, claro, e não da roubalheira que hoje se espraia. Deixo aqui minha opinião. Cada um pense como quiser, tem direito, afinal vivemos numa Democracia. Será? Para encerrar, lembro poema recente (Exílio) do amigo português Manuel Alegre que diz:

Havia uma casa.
Havia uma pátria.
Éramos vinte ou trinta nas margens do Sena
Onde o vento cantava
Uma canção estrangeira.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

José Paulo Cavalcanti Filho, Advogado
jp@jpc.com.br

 

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