OPINIÃO | Notícia

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire: A Justiça e a "onda" dos bebês reborn

O desafio reside em discernir entre o uso consciente e o apelo exacerbado, o que pode mascarar questões profundas, que impõem respostas ao Direito

Por GUSTAVO FREIRE Publicado em 30/05/2025 às 7:00

Na Bahia, noticiou-se o caso de uma recepcionista que ingressou com reclamação trabalhista alegando o direito à licença-maternidade pelo seu vínculo afetivo com um bebê reborn, réplica hiper-realista de um bebê normal. Na petição inicial, a autora, inclusive, sustentou que passou a ser motivo de zombaria na
empresa na qual laborava e que precisava de um psiquiatra, não de licença maternidade. Em Goiás, um casal procurou uma advogada com a intenção de judicializar a guarda de uma bebê reborn, o que foi recusado pela causídica.

Sim, os bebês reborn não são crianças, é evidente. Foram inventados para fins ora terapêuticos, ora  comerciais, ainda que produzam apego afetivo intenso. Por isso, na visão de muitos, seria impreciso falar em “guarda” de um objeto inanimado, quando milhares de crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade seguem invisibilizados.

O processo de criação desses bebês, o “reborning”, envolve técnicas artesanais sofisticadíssimas. Não à toa o preço que custam. Já as razões que levam alguém a estabelecer tamanha ligação emocional variam, do isolamento social à desconexão da realidade. Mas se o apego degringola para a dependência, aí sim deve trazer preocupação. Não o afastar do outro, menos ainda o rir do outro.

Nas redes sociais, é frequente entre perfis do sexo feminino o role playing (encenações onde os reborn são cuidados como filhos humanos). Há cenas de montagem de enxovais, passeios, trocas de roupa, alimentação com mamadeiras, consultas médicas simuladas e também "aniversários".

Não é diferente da IA, que também simula humanidade. Tanto a IA não sente dor, quanto o bebê reborn também não. Ambos são incapazes de amar. Limitamse a responder. O indivíduo não confunde fantasia com verdade, mas deseja o que não sente, nem escapa do seu alcance. O objeto inanimado pode ser
desligado, deletado, guardado em um móvel. A questão é a busca de preencher um vazio afetivo com lo que nunca, jamais, poderá ser humano.

Como escreve a doutora em Psicologia Tauane Gehm em sua coluna on line na revista Veja Saúde publicada em meados de maio desse ano (“Bebês reborn: o que há por trás do espanto?”), “O bebê reborn está ali. Parado. Imóvel. E, ainda assim, é cuidado como se fosse real. Não responde. Não sente. Não cresce. E
talvez seja justamente por isso que tanta gente o tenha escolhido. Não por
loucura, mas por tentativa”.

Estamos diante de um fenômeno que questiona o modelo tradicional de sociedade. O bebê reborn é mais do que um hobby, mais do que um brinquedo custoso. Ele pode envolver necessidades emocionais. Pode ser instrumento de acolhimento. Pode ajudar a lidar com perdas e a preencher lacunas, com benefícios terapêuticos em áreas como as da geriatria e saúde mental. Poder ser muitas coisas. Não cabe, obrigatoriamente, em uma mesma caixinha.

O desafio reside em discernir entre o uso consciente e o apelo exacerbado, o que pode mascarar questões mais profundas, que impõem respostas que talvez o Direito ainda não esteja preparado para dar, mas sobre as quais é convidado a discutir. Comportamentos associados a tais objetos inanimados hiper-realistas
não devem ser automaticamente patologizados, mas investigados e compreendidos em seu contexto, separando-se o yin do yang: de um lado, quando o vínculo oferece alívio, conforto, processo de cura, sendo uma forma de enfrentamento adaptativo; de outro lado, quando impede a pessoa de criar vínculos humanos ou a faz isolar-se em excesso da realidade ou traduz uma recusa de lidar com perdas, o que aponta na direção do sofrimento psíquico.

A discussão não é simplória, nem merece ser motivo de chacota como vem sendo por parte de muitos. Como visto, podem coexistir aspectos emocionais e afetivos, de natureza patrimonial, de divisão de bens, o que, sim, pode ser de interesse do Direito, ao menos no campo patrimonial. Se a Ciência Jurídica irá caminhar no sentido de trazer outras respostas ou se ignorará o tema é algo incerto, por ora. Tem prevalecido uma perspectiva de desmerecimento de qualquer seriedade ao debate. Aí, talvez, possa estar o equívoco: na ânsia de etiquetar rótulos ou de cravar diagnósticos, marginalizar o assunto.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 


 

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