Eduardo Carvalho: Harvard e o Estado - Fronteiras da Liberdade Acadêmica
É nesse contexto que o recente embate entre Harvard e o governo federal norte-americano adquire proporções globais, ultrapassando os muros do campus

Fundada em 1636, a Universidade Harvard é a mais antiga instituição de ensino superior dos Estados Unidos e uma das mais prestigiadas do mundo. Não é um ator neutro no cenário global da educação. Com um legado de quase quatro séculos, formou dezenas de chefes de Estado, inúmeros líderes empresariais, juristas, cientistas, intelectuais e artistas, além de 161 laureados com o Prêmio Nobel. Seus ex-alunos ocupam cadeiras no Congresso dos EUA, lideram instituições financeiras globais, são juízes, dirigem corporações multinacionais e moldam narrativas globais por meio da mídia, think tanks e plataformas tecnológicas. Sua produção científica, o rigor acadêmico e a pluralidade de pensamento consolidaram Harvard como um farol do conhecimento e da liberdade intelectual. Sua influência alcança praticamente todas as esferas do poder global — e esse poder não é acidental: Foi meticulosamente cultivado ao longo dos séculos.
É nesse contexto que o recente embate entre Harvard e o governo federal norte-americano adquire proporções globais, ultrapassando os muros do campus de Cambridge e colocando em xeque princípios fundamentais da democracia e da autonomia universitária. O governo impôs exigências à universidade, incluindo reformas em sua governança, vigilância ideológica sobre professores e alunos, punições por discursos considerados ofensivos e a eliminação de programas de diversidade. Embora o pretexto seja o combate ao antissemitismo — que, de fato, merece atenção —, as imposições extrapolam esse objetivo e violam direitos constitucionais e a independência acadêmica.
Harvard respondeu, reafirmando seu compromisso com o combate ao antissemitismo e a outras formas de intolerância. Declarou que essas manifestações não apenas são abomináveis e contrárias aos valores da instituição, como também ameaçam sua missão acadêmica. Com esse objetivo, a universidade afirmou que já implementou — e continuará a implementar — mudanças estruturais, políticas e programáticas duradouras para garantir um ambiente de aprendizagem acolhedor, onde todos os estudantes possam prosperar.
A universidade lamentou que a carta enviada pelo governo tenha desconsiderado esses esforços e, em vez disso, apresentado exigências que violam a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, invadindo liberdades universitárias há muito reconhecidas pela Suprema Corte. A carta estabelece que Harvard deve aceitar todos os termos impostos ou arriscar-se a perder mais de 2 bilhões de dólares em financiamento federal essencial para pesquisas e inovações vitais — recursos que sustentam o papel de liderança da universidade na ciência, na medicina e em diversas áreas de conhecimento. Além disso, o governo revogou a autorização para Harvard matricular cerca de 7 mil estudantes internacionais, oriundos de 147 países. A decisão foi posteriormente suspensa pelo Judiciário.
O caso vai além de uma disputa administrativa. Está em jogo a fronteira entre o legítimo combate à discriminação e o uso político do poder estatal. Se o governo conseguir impor padrões ideológicos a uma universidade do prestígio de Harvard, abrirá um precedente perigoso para a interferência em outras instituições.
A posição de Harvard é uma defesa do ideal universitário, fundado na liberdade, na pluralidade e na autonomia. O pluralismo de ideias é o solo fértil da democracia, e as universidades são os laboratórios onde essa fertilidade se manifesta. É nesse ambiente, protegido da coerção estatal, que se formam cidadãos críticos, cientistas independentes e líderes éticos. A universidade reafirma que está aberta ao diálogo sobre o que já fez e o que pretende fazer para melhorar a experiência de todos os membros de sua comunidade. No entanto, não abrirá mão de sua independência nem de seus direitos constitucionais.
O que Harvard propõe é um pacto no qual a autonomia represente responsabilidade compartilhada, a liberdade signifique compromisso democrático e a diversidade de pensamento seja compreendida como riqueza — não como ameaça. A universidade não busca imunidade à crítica, mas a preservação de sua função como espaço de reflexão livre. A governança democrática, em seu melhor, depende de um equilíbrio delicado: o Estado deve ter autoridade suficiente para garantir justiça e proteger direitos, enquanto as instituições devem manter autonomia para questionar, criticar e moldar a direção moral da sociedade. As universidades — ao lado dos tribunais, da imprensa e da sociedade civil — têm papel essencial nesse equilíbrio.
Este episódio pode se tornar um marco para a reavaliação do papel do Estado no ensino superior e para os limites da imposição de condicionalidades ao financiamento público. Utilizar recursos federais como ferramenta de controle ideológico representa uma ameaça séria à liberdade acadêmica. Que tipo de pensamento florescerá onde a submissão política se impõe à investigação crítica? Que tipo de sociedade formaremos se nossas universidades forem condicionadas a agradar governos em vez de desafiá-los?
A resposta de Harvard, ao recusar os termos propostos e reafirmar seu compromisso com a liberdade, é um gesto de coragem institucional — e um convite à sociedade para refletir sobre o papel das universidades. Que sejam instituições comprometidas com a justiça, a busca da verdade e a dignidade humana. Defender Harvard, neste contexto, é defender a própria ideia de universidade como espaço de liberdade, descoberta e humanismo.
Embora o episódio ocorra nos Estados Unidos, suas implicações ressoam globalmente.
Eduardo Carvalho, Harvard Advanced Leadership Fellow