OPINIÃO | Notícia

Limites das garantias constitucionais de liberdade de expressão e de imunidade material parlamentar na visão do Supremo Tribunal Federal

De um lado, assegura-se a todos os cidadãos o direito de manifestar livremente suas opiniões; de outro, garante-se aos parlamentares a inviolabilidade

Por PAULO FERNANDES PINTO Publicado em 29/05/2025 às 7:00

A Constituição Federal de 1988 consagra, como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão (art. 5º, IV, segundo o qual “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”). Ao lado da liberdade de expressão assegurada a todos os cidadãos, a Carta Magna garantiu aos parlamentares a inviolabilidade por suas palavras, opiniões e votos no exercício do mandato (art. 53, caput, no que diz respeito aos Deputados Federais e Senadores; art. 27, § 1º, no tocante aos Deputados Estaduais; e art. 29, VIII, quanto aos Vereadores), que constitui uma espécie de liberdade de expressão qualificada.

De um lado, assegura-se a todos os cidadãos o direito de manifestar livremente suas opiniões; de outro, garante-se aos parlamentares a inviolabilidade por suas manifestações levadas a efeito no exercício do mandato, dando-se, em benefício desses representantes do povo, uma maior densidade à garantia da liberdade de expressão. Essa garantia parlamentar, comumente chamada de imunidade material, pois afasta a própria antijuridicidade da conduta, tornando-a fato atípico do ponto de visa da responsabilização criminal, visa preservar a independência do Poder Legislativo e assegurar que seus membros atuem sem temor de retaliação judicial.

Todavia, tais garantias não são absolutas, devendo ser interpretadas de forma compatível com outros princípios constitucionais, como o respeito à dignidade da pessoa humana e o decoro institucional que deve nortear a conduta de todo e qualquer agente público.
A doutrina, assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, vem delimitando o alcance desses direitos de índole constitucional.

A liberdade de expressão, embora ampla, comporta restrições quando extrapola os limites da crítica legítima para ingressar no terreno da calúnia, da injúria, da difamação ou do discurso de ódio (qualquer forma de expressão que propague, incite, promova ou justifique o ódio, a discriminação ou a violência contra indivíduos ou grupos com base em características como raça, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, deficiência ou qualquer outro marcador identitário).

Quanto à imunidade material dos parlamentares, o STF vem assentando em sua jurisprudência que ela deve ser compreendida para a garantia do adequado desempenho de mandatos parlamentares. A evolução da interpretação da imunidade parlamentar exige, atualmente, mais do que o simples vínculo formal com o cargo: o seu reconhecimento condiciona-se ao que a Corte Suprema denominou nexo de implicação recíproca (necessária conexão substancial entre a manifestação do parlamentar e o exercício do mandato legislativo) e a presença de uma finalidade pública no discurso (ou seja, a presença de determinada finalidade nas manifestações parlamentares, tal como prestar contas ao eleitor de seus atos praticados no exercício do mandato, tecer críticas a políticas governamentais, atuar na fiscalização de gastos públicos e tantas outras ações inseridas nas suas atribuições constitucionais).

Em síntese, conforme se colhe do decidido pelo STF no ARE 1.421.633 AgR/SC (relator Min. Alexandre de Moraes, julgado em 3/5/2023) e na PET 8.242 AgR/DF (relator para acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 3/5/2022) exige-se, para caracterizar a inviolabilidade, a presença simultânea desses dois requisitos: nexo de implicação recíproca e adequação da manifestação aos parâmetros ligados à própria finalidade da liberdade de expressão qualificada do parlamentar (por se tratar de prerrogativa essencial ao desempenho de suas funções, nos casos de abusos ou de usos criminosos, fraudulentos ou ardilosos dessa prerrogativa para a ofensa aviltante a terceiros ou para incitar a prática de delitos, pode-se concluir pela não incidência da cláusula de imunidade, já que o referido privilégio não pode ser utilizado de forma contrária à própria finalidade que motivou a sua instituição).

É nesse contexto que ganha relevância o conceito de injúria em razão da forma — a chamada Formalbeleidigung do Direito Alemão. Trata-se da ofensa que não necessariamente se expressa por meio de palavras insultuosas, mas sim pelo modo como a manifestação se dá: com deboche, escárnio ou gestos humilhantes. Ela se caracteriza quando, independentemente de um substrato fático verdadeiro, a declaração feita pelo agressor ocorre de forma humilhante ou em contexto que a torne extremamente depreciativa. A forma da expressão, nesse caso, adquire centralidade na análise da tipicidade penal e pode ensejar responsabilização mesmo em contextos parlamentares (STF, PET 8.242 AgR/DF, relator para acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 3/5/2022).

Exemplos típicos de injúria em razão da forma incluem o uso de gestos obscenos, imitações zombeteiras de características físicas da vítima ou expressões de desdém proferidas em tom jocoso com o objetivo de humilhar.

A doutrina e a jurisprudência fornecem vários exemplos que podem ser enquadrados como injúria em razão da forma, podendo-se destacar os seguintes: a) imitação jocosa de deficiência física ou condição pessoal: por exemplo, um parlamentar simula mancar ou usar as mãos para zombar da deficiência de um adversário político; b) uso performático de objetos com conotação vexatória: por exemplo, levar para o plenário da Casa Legislativa uma fantasia, peruca ou cartaz para ridicularizar alguém, com zombarias explícitas; c) atitudes que isoladamente seriam inofensivas, mas que ganham carga injuriosa pelo contexto e forma da manifestação: por exemplo, virar de costas ou bater palmas de maneira sarcástica quando a vítima começa a falar; d) gesto obsceno ou de conotação sexual com intuito ofensivo: por exemplo, fazer movimento pélvico ou gesticulação simulando penetração sexual, com o intuito de ridicularizar ou insultar a vítima, ou fazer gestos que simulam apalpação de seios ou nádegas (frequentemente usado para ofender mulheres, implicando conotação sexual).
Ainda que formalmente vinculados a um contexto político, o conteúdo e — sobretudo — a forma das manifestações trazidas nos exemplos acima citados revelariam uma clara intenção de aviltamento pessoal, completamente divorciada da crítica política legítima.

A jurisprudência do STF reconhece que excessos de linguagem, verbal ou não verbal (uso de imagens, sinais ou gestos), mesmo quando praticados por parlamentares, podem ensejar sua responsabilização penal ou cível, nos casos em que não seja possível identificar a presença dos requisitos mencionados anteriormente como necessários para o reconhecimento da imunidade parlamentar.

Por fim, importante ressaltar que, mesmo nos casos em que seja possível identificar a presença dos requisitos para o reconhecimento da imunidade material (afastando, assim, a possibilidade de responsabilização penal), os parlamentares que praticam excesso em seus pronunciamentos podem ser penalizados no campo político-disciplinar por quebra de decoro, desde que apurado em sede própria (procedimento conduzido no âmbito da própria Casa Legislativa) e com respeito à autonomia do Parlamento. A inviolabilidade constitucional não impede, portanto, que o Poder Legislativo puna internamente manifestações que, pela forma ultrajante, atentem contra o respeito mínimo devido aos adversários, à instituição e à sociedade, conforme já decidiu o STF (STP 949 MC-Ref/PB, rel. Min. Rosa Weber, julgado em 3/7/2023).

Assim, se por um lado o STF tem reafirmado o escopo protetivo da imunidade parlamentar como garantia da atuação livre e combativa do representante eleito, por outro também reconhece que o mandato não é um salvo-conduto para a vulgaridade, o insulto gratuito ou a promoção do desprezo à dignidade alheia sob pretexto de liberdade política. O parlamentar, antes de tudo, deve servir como modelo de civilidade e responsabilidade no uso da palavra pública.

Paulo Fernandes Pinto é Procurador da Assembleia Legislativa de Pernambuco e advogado especialista em Direito Público e Eleitoral e Rodrigo Fernandes Pinto é advogado especialista em Direito Criminal

 

Compartilhe

Tags