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Que país é este?

Sem conhecer o Brasil e sem capacidade de governar, o país vai sendo empurrado à deriva amarrado por um emaranhado de gambiarras...........

Por SÉRGIO C. BUARQUE Publicado em 28/05/2025 às 0:00 | Atualizado em 28/05/2025 às 10:50

O Brasil não é mais o Brasil. A velocidade das transformações estruturais pelas quais o Brasil passou nas últimas décadas tornou este um país completamente desconhecido. Os partidos e líderes políticos brasileiros se movem e atuam como se nada tivesse mudado na sociedade brasileira. E ainda ignoram a configuração geopolítica que resulta da globalização e da aceleração das inovações tecnológicas no qual o país está inserido. O desconhecimento do Brasil fica mais evidente quando se analisam as convicções políticas do principal partido de esquerda e as prioridades do governo Lula da Silva. Os grandes estudiosos e intelectuais brasileiros do século XX, desvendaram a realidade de um país que não existe.

O Brasil desta segunda década do século XXI é um país envelhecido e altamente urbanizado, socialmente fragmentado e conservador, muito pobre e desigual, modernizado economicamente e integrado à economia mundial. A mudança demográfica é um enorme desafio. Em 2010, os brasileiros idosos (65 anos e mais) eram 7,4%, saltando para 10,9%, em 2022, tendência que se intensifica no futuro. O resultado será menos trabalhadores ativos para manter o crescente número de inativos. Desastre anunciado, a não ser que se consiga uma rápida elevação da produtividade do trabalho.

Cerca de 95 milhões de brasileiros (45% da população brasileira) são considerados pelo governo como "grupo vulnerável e/ou prioritário para acesso e usufruto" da assistência, dependendo de transferência de renda para sobreviver. Só o Bolsa Família beneficia 20,86 milhões de famílias. Parece um grande sucesso. Mas é lamentável que o país tenha tantos brasileiros incapacitados de geração da sua própria, dependentes do Estado para a sua sobrevivência, um enorme desperdício de capacidades humanas. É preocupante a falta de perspectiva de toda esta geração de brasileiros. E o destino de um elevado volume de recursos públicos para a assistência social que terminam faltando para investimentos estruturadores de mudança, como a educação. O Brasil é um país de semianalfabetos - quase 30% da população de 15 a 64 anos não têm capacidade de aplicar habilidades de leitura, escrita e matemática em tarefas cotidianas - e de jovens despreparados para o futuro (apenas 5% dos estudantes que terminam o ensino médio nas escolas públicas têm proficiência em matemática). Este Brasil tem mais de dez milhões de jovens de 15 a 29 anos que não trabalham nem estudam (21% da população nesta faixa etária) evidenciando um trágico e inaceitável desperdício de habilidades humanas.

E, no entanto, quase todos os brasileiros têm um smartphone e utilizam o pix como meio de pagamento, formas mais avançadas de digitalização da sociedade. O smartfone transformou a sociedade e a comunicação entre as pessoas, substituiu as formas de organização social pela interação virtual e territorialmente dispersa, concedendo um poder excepcional aos chamados influencers. A velocidade e amplitude da propagação do smartfone provocou também uma mudança forte nas relações econômicas e de trabalho. Que paradoxo: uma sociedade digital enquanto quase metade dos brasileiros sobrevive de transferência de renda.

A sociedade está fragmentada socialmente, e não apenas pela desigualdade de renda: um reduzido segmento de brasileiros altamente educados e integrados ao mundo globalizado e uma massa da população sem educação e sem acesso aos serviços públicos. Fragmentada também nos valores e comportamentos, resultado combinado do avanço das igrejas evangélicas, por um lado, e da emergência do identitarismo, por outro. Na última década, o percentual da população brasileira evangélica saltou de 22,2%, em 2010, para 35,8%, em 2022 (IBGE) com o avanço impressionante de novos templos evangélicos no território brasileiro. Embora a bíblia seja a mesma base religiosa, os pentecostais têm valores e comportamentos completamente diferentes dos católicos, sendo mais afeitos ao Velho Testamento e defensores da Teologia de Prosperidade, que ignora o Estado e estimula o empreendedorismo individual com apoio na fé, na convivência no templo, nas preces do pastor e no dízimo.

No extremo oposto do mundo evangélico, os grupos identitários expressam valores e comportamentos radicalmente distintos na defesa dos direitos civis e do respeito à diversidade de gênero, de orientação sexual, de etnia ou raça. O crescimento dos grupos identitários vem deslocando as pautas políticas do Brasil dos interesses sociais de classe ou território (favelas e comunidades pobres) para as lutas focados nos direitos civis de forte conteúdo liberal. E conseguiu ganhar destaque nos discursos e propostas da esquerda tradicional A fragmentação dos valores e comportamento é responsável direta pela polarização política do Brasil, os lulistas agarrados aos movimentos identitários e os bolsonaristas com base sólida na direita evangélica. Mas, no fundamental, o Brasil se tornou um país muito conservador nos valores e comportamentos e com uma clara inclinação para a direita no espectro político e ideológico. Segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa DataSenado, 29% dos brasileiros se consideram de direita, quase o dobro daqueles que se declaram de esquerda (15%); entre os evangélicos, o percentual de direita sobe para 35% (esquerda cai para 8%).

O Brasil é o paraíso do crime organizado com diferentes facções (traficantes e milicianos) dominando territórios das cidades, formando quase um Estado autocrático em pedaços do solo brasileiro e formando reinos isolados impondo sua autoridade violenta sobre as comunidades. Em 2019, traficantes e milicianos controlavam mais de 75% dos territórios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (www.anf.org.br). Além da expansão territorial, do poder de fogo e do enriquecimento, o crime organizado vem entrando nas atividades legais que servem para aumentar a renda dos negócios ilegais e para lavar o dinheiro sujo. A face mais delicada do crime organizado se manifesta na sua promiscuidade com instâncias políticas, policiais e judiciárias com corrupção e mesmo penetração concreta nas instituições. O curioso fenômeno de conversão ao Evangelho de membros e líderes do crime organizado, alguns deles ordenados pastores, concede um fundamento religioso às suas atuações nas comunidades.

Os brasileiros não conhecem o Brasil, os políticos não percebem a complexa realidade brasileira do século XXI e se limitam a disputar espaços num Estado fragilizado e desestruturado, do que são, em grande parte, responsáveis. As propostas e iniciativas dos governos estão voltadas para um Brasil que não existe mais, de modo que não convencem o eleitorado e tratam as distorções e estrangulamentos com gambiarras. Pior, tem que lidar com uma crise fiscal que compromete a capacidade de investimentos públicos e com instituições da República igualmente fragmentadas e dominadas por interesses mesquinhos e manifestações populistas. O Executivo contido pelas restrições fiscais e espremido pela ganância do Legislativo, o Congresso tentando governar e se apropriar de uma parcela significativa das despesas discricionárias do governo, e o Judiciário se metendo a executar e a legislar, aproveitando supostas brechas e indefinições na Constituição. Sem conhecer o Brasil e sem capacidade de governar, o país vai sendo empurrado à deriva amarrado por um emaranhado de gambiarras. Assim, não dá para ter esperanças no Brasil. Antes de tudo, precisamos conhecer que país é este. 

Sérgio C. Buarque, economista

 

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