Opinião | Artigo

Valdecir Pascoal: 'Anatomia de uma (re)conquista, em 4 atos'

Permitam-me abordar a emblemática decisão do STF sobre o julgamento de atos de gestão praticados por prefeitos que atuam como ordenadores de despesas

Por VALDECIR PASCOAL Publicado em 25/05/2025 às 22:05

Os debates atuais sobre os Tribunais de Contas têm destacado o controle e a avaliação de políticas públicas, o fortalecimento do diálogo institucional com os gestores — incluindo a busca por soluções consensuais — e o uso da Inteligência Artificial.

Permitam-me, contudo, abordar um tema mais clássico do controle, relacionado à conformidade das contas públicas: a recente e emblemática decisão do STF sobre o julgamento de atos de gestão praticados por prefeitos que atuam como ordenadores de despesas. Convido o leitor a um breve passeio pelos últimos 15 anos.

ATO I – O triunfo da iniciativa popular: A lei da ficha limpa (2010)

2010 foi um marco da democracia brasileira. A sociedade civil protagonizou a criação da Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010), que reforçou a moralidade administrativa e a prevenção da corrupção eleitoral. Entre seus avanços, a nova redação da alínea “g” do art. 1º da LC 64/90 previu a inelegibilidade dos ordenadores de despesa com contas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa.

Mais do que isso: a lei conferiu aos Tribunais de Contas a competência para julgar as contas de todos os ordenadores, inclusive mandatários eleitos, quando atuem nessa condição. Pela primeira vez, ficou expresso que os chefes do Executivo — a exemplo dos prefeitos —, ao praticarem atos de gestão, estariam, à luz do art. 71, II, da CF/88, sujeitos ao julgamento técnico desses órgãos, cujas decisões poderiam ensejar responsabilizações e impactar a análise de inelegibilidade pela Justiça Eleitoral.

ATO II – O reconhecimento constitucional (2012)

Em 2012, o STF confirmou a plena constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, nas ADCs 29 e 30 e na ADI 4.578. Reconheceu-se que a moralidade e a legitimidade das eleições justificavam as restrições da lei, incluindo a inelegibilidade por contas julgadas irregulares pelos Tribunais de Contas.

Dois registros. Institucionalmente, o STF fortaleceu o papel dos Tribunais de Contas como qualificadores da democracia e da boa gestão. Pessoalmente, tive a honra de ver citado, no Acórdão da Corte Suprema, um trecho do meu primeiro livro — A Intervenção do Estado nos Municípios: o papel dos Tribunais de Contas —, em que trato da dualidade das contas apresentadas pelo Chefe do Executivo.

ATO III – A inflexão inesperada (2016)

Mas, em 2016, veio o revés. No julgamento do RE 848.826 (Tema 835), por apertada maioria (6x5), o STF firmou entendimento de que todas as contas de prefeitos — inclusive as de gestão — seriam julgadas pelas Câmaras Municipais, cabendo aos Tribunais de Contas apenas emitir parecer prévio. Na prática, o STF equiparou o regime processual das contas de gestão ao das chamadas contas de governo — estas, sim, inequivocamente passíveis de julgamento pelo Legislativo municipal, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas, nos termos dos arts. 31, 71, I, e 75 da CF/88.

Vivenciei esse momento como presidente da Atricon, no plenário do STF. Foi um dos dias mais tristes de minha trajetória no controle externo. No Jornal Nacional daquela noite, externei minha discordância. A decisão representava um retrocesso e gerava, além disso, o que o amigo Conselheiro Dirceu Rodolfo, estudioso do tema, qualificou como um “ponto cego institucional”: se apenas a Câmara julga, poderiam os Tribunais de Contas responsabilizar prefeitos que praticam atos de gestão?

A decisão contrariava a lógica e o espírito do art. 71, II, da CF/88, além de desconsiderar a assimetria estrutural das Câmaras Municipais em boa parte do país. O voto vencido do ministro Luís Roberto Barroso expressava bem a perplexidade: “não é o cargo, mas a natureza da conta que deve definir o órgão competente” — posição, vale o registro, sustentada historicamente por Célio Borja e Carlos Ayres Britto. O fato é que, embora caiba discordância, as decisões do Supremo devem ser respeitadas. Mas, desde então, alimentei a esperança de que a “ficha” um dia voltasse a “subir”, rumo a um equilíbrio mais justo entre o papel do Legislativo e o dos Tribunais de Contas no exercício de suas atribuições de controle externo.

ATO IV – A reconquista (2025)

E subiu. Dez anos depois, em 2025, o STF revisitou o tema na ADPF 982. Com nova composição, e após eficaz trabalho de sensibilização liderado pela Atricon, o Supremo, por unanimidade e seguindo o voto lapidar do relator, ministro Flávio Dino, reconheceu que os Tribunais de Contas têm competência para julgar as contas de gestão de prefeitos ordenadores de despesas, podendo fazer determinações e responsabilizá-los, quando couber.

De fato, trata-se de uma importante reconquista. O STF manteve o entendimento de que o juízo político-eleitoral das contas permanece a cargo da Câmara e da Justiça Eleitoral — aspecto que merece, aliás, outra reflexão. Mas o essencial foi restabelecido: corrigiu-se o chamado “ponto cego”, devolvendo-se, aos Tribunais de Contas, o poder de julgamento técnico das contas de gestão do Chefe do Executivo, o que promove a especialização, o equilíbrio e a efetividade constitucional.

*Valdecir Pascoal é presidente do TCE-PE

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