O jogo que virou realidade
É inegável que a ascensão da China representa o fenômeno geopolítico mais relevante das últimas décadas. Pequim amplia sua presença global.

Alguns leitores certamente já jogaram WAR. Hipnotizante, o tabuleiro colorido, os exércitos de plástico e as cartas com objetivos secretos nos mantêm, por horas, reunidos em torno de uma mesa em disputa eletrizante.
Há poucos dias, convidei amigos para uma partida em meu velho e enodoado tabuleiro. Entre dados lançados e territórios disputados, rimos, traímos alianças e esquecemos as urgências do dia a dia.
Ao final do jogo, a conversa continuou na sala. O desenrolar da partida nos conduziu, de forma quase natural, à geopolítica contemporânea.
No tabuleiro do WAR, o mundo é dividido de maneira peculiar. A América do Norte incorpora a América Central, a Europa abarca parte da Rússia a oeste dos Urais, e a Ásia absorve o restante do território russo e o Oriente Médio. Já a América do Sul, a África e a Oceania mantêm contornos mais próximos da geografia.
Chama atenção uma hierarquia implícita: os territórios ao sul do Equador oferecem menos bônus estratégicos, enquanto a América do Norte, a Europa e a Ásia concentram o maior poder de combate. Três regiões hegemônicas, três periféricas — uma metáfora das assimetrias do mundo real.
Atualmente, vivemos uma reconfiguração que guarda semelhança com a lógica daquele jogo. Os Estados Unidos, embora ainda sejam a superpotência mais poderosa, adotam uma postura nacionalista e protecionista. O distanciamento de alianças tradicionais — como a OTAN — fragiliza parceiros históricos e contribui para um isolamento e enfraquecimento estratégicos.
A Europa, por sua vez, enfrenta uma crise de coesão. Desafiada por questões energéticas, migratórias e militares, lida com os efeitos da guerra na Ucrânia, que expôs sua vulnerabilidade defensiva e a dificuldade de reagir de forma coordenada sem o apoio americano.
Nesse contexto, a Rússia desempenha um papel ambíguo. Mesmo atingida econômica e militarmente, continua influente, valendo-se de instrumentos clássicos de poder: controle de fontes energéticas, dissuasão nuclear e diplomacia assertiva. Seu crescente alinhamento com a China aponta para um novo eixo de cooperação na Eurásia, desafiando a supremacia ocidental e fortalecendo o peso asiático nas decisões globais.
É inegável que a ascensão da China representa o fenômeno geopolítico mais relevante das últimas décadas. Com um projeto estratégico de longo prazo, Pequim amplia sua presença global. A Nova Rota da Seda vai além da economia; é uma plataforma abrangente de influência política e diplomática.
A Índia também se destaca. Com sua população jovem, dinamismo econômico, avanço tecnológico e protagonismo diplomático, disputa efetivo espaço como player global.
Como no WAR, no mundo real parece tornar-se evidente o corolário: quem domina a Ásia tem maiores chances de vencer o jogo.
Já no cafezinho, inquietou-nos a pergunta: o eixo do poder global está se deslocando inexoravelmente do Atlântico para o Indo-Pacífico e, por extensão, para o coração da Eurásia?
Ficou-nos a impressão de que o Ocidente, se quiser manter relevância, terá de reconhecer esse novo tabuleiro. A lógica tradicional, baseada em alianças euro-atlânticas e hegemonia unipolar, já não se sustenta diante da complexidade do cenário atual.
O jogo mudou, as peças são outras, o ritmo é distinto e as regras estão sendo reescritas. Em política internacional, vence quem sabe onde concentrar forças, quando recuar, como formar alianças e, sobretudo, quem compreende para onde o mundo está se movendo.
A Ásia - diga-se China -, estratégica e silenciosamente, já lançou seus dados. A Rússia, movida por instintos imperiais, alinha-se a ela — ao menos por ora. A "América" reage para não se tornar irrelevante geopoliticamente. A Europa desperta de sua narcolepsia e gasta bilhões de euros para o reaparelhamento bélico.
E nós, por aqui, qual estratégia devemos adotar para superar a irrelevância geopolítica a que fomos relegados, tanto no jogo quanto na realidade?
Fortalecermo-nos internamente ao acumular poder de combate, construir alianças sustentáveis quando nos seja favorável e assumir neutralidade pragmática quando nada ganharemos ao favorecer um lado, é uma opção.
Ou, ao revés, lançarmo-nos vendados no abismo da realpolitik, apostando na sorte dos dados e na complacência dos antagonistas, para resistirmos mais uma rodada.
Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva