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Energia, inadimplência e responsabilidade pública

Garantir a continuidade de serviços públicos essenciais é uma prioridade. Mas isso não se faz às custas do desequilíbrio econômico das concessionárias

Por BRUNO BAPTISTA Publicado em 08/05/2025 às 0:00 | Atualizado em 08/05/2025 às 9:52

Uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal reacendeu um tema espinhoso: pode uma concessionária cortar o fornecimento de energia elétrica a um hospital, escola ou qualquer outro ente público prestador de serviço essencial, em razão de inadimplência? Para muitos, a resposta intuitiva seria "não". Mas o direito e o bom senso institucional nos pedem uma análise mais profunda.

A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário 1.513.758, relatado pelo ministro André Mendonça. O caso envolvia uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal para impedir que a empresa Light, no Rio de Janeiro, cortasse a energia de órgãos públicos inadimplentes. O MPF chegou a pedir, incidentalmente, a declaração de inconstitucionalidade de normas federais que autorizam esse tipo de medida — o artigo 17 da Lei 9.427/1996 e o artigo 94 da Resolução nº 456 da Aneel.

A ação foi extinta pelo STF. E o motivo é importante: o Supremo entendeu que o pedido, embora formulado como "incidental", buscava na prática proibir de forma ampla e definitiva o corte de energia com base em normas válidas e vigentes. Isso se enquadra como controle abstrato de constitucionalidade, o que exige outro tipo de ação, por via de controle concentrado, com outros legitimados.

Mas para além das questões processuais, há um debate mais amplo e urgente: deve o Poder Judiciário transformar a inadimplência do Estado em regra, impondo à concessionária — e, indiretamente, ao conjunto da sociedade — a obrigação de arcar com esse custo?

Cortar a energia de um hospital ou de uma estação de bombeamento d'água não é uma decisão fácil. Mas permitir que órgãos públicos deixem de pagar a conta de luz, sem consequência alguma, é injusto com os consumidores que cumprem suas obrigações em dia — especialmente os mais pobres, que vivem no limite do orçamento e não têm quem pague por eles.

A tarifa de energia no Brasil é calculada para que o custo do sistema seja dividido entre todos os consumidores. Quando um grande devedor não paga, quem cobre o rombo é o restante da população — inclusive os beneficiários da tarifa social, que já enfrentam dificuldades imensas para manter seus serviços essenciais funcionando.

Ao confirmar a validade das regras que autorizam o corte após notificação prévia, o STF não está incentivando a descontinuidade dos serviços públicos, mas sim reafirmando a responsabilidade dos gestores públicos em priorizar o básico: pagar pela energia consumida, como qualquer cidadão. A dignidade da pessoa humana, tantas vezes invocada nesse debate, também deve proteger a dona de casa da periferia, que vê sua conta subir porque o hospital do seu bairro não paga a luz.

Garantir a continuidade de serviços públicos essenciais é, sem dúvida, uma prioridade. Mas isso não se faz às custas do desequilíbrio econômico das concessionárias, nem do sacrifício dos mais pobres. A solução está na boa gestão, na previsibilidade orçamentária e no diálogo institucional. E, quando necessário, em ações pontuais e fundamentadas — não em proibições genéricas que comprometem a sustentabilidade do sistema.

Responsabilidade social começa pelo respeito às regras. Inclusive por parte do Estado.

Bruno Baptista, advogado

 

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