OPINIÃO | Notícia

Gustavo Freire: Francisco

A humanidade, conceito que exorbita dos credos de fé, na perspectiva de um sentido maior de ética universal, perdeu a figura de Jorge Mário Bergoglio

Por GUSTAVO FREIRE Publicado em 21/04/2025 às 13:30 | Atualizado em 21/04/2025 às 14:27

Falar de um Papa enquanto chefe de Estado (Vaticano) e chefe da Igreja Católica, a maior em número de seguidores no planeta (quase 1 bilhão e meio de pessoas), é algo que traz consigo, naturalmente, reflexões que dialogam com o universo finito da religiosidade. Não é, porém, o enfoque do presente texto.

A humanidade, conceito que exorbita dos credos de fé, na perspectiva de um sentido maior de ética universal, perdeu a figura de Jorge Mário Bergoglio, o Papa Francisco. Argentino de Buenos Aires, há 12 anos sentado no trono de Pedro, Francisco se foi depois de 88 primaveras. Sucedeu o alemão Bento XVI, essencialmente um teólogo conservador. Despediu-se do invólucro carnal em uma quadra histórica especialmente difícil, complexa, de recrudescimento de uma ideologia que vê com muita má vontade a agenda dos direitos humanos.

Francisco foi um coração acolhedor. Seus discursos, suas encíclicas, suas entrevistas, sempre que se manifestava, frisava a leveza, a humildade, a resiliência e a aceitação do próximo. Era um homem simples, avesso a pompas e luxos, voltado verdadeiramente ao desempenho pastoral. Acreditava na proximidade com os movimentos populares, já que a seu sentir o cristianismo não surgiu em suntuosas catedrais, mas nas periferias. Semeou a semente de um futuro diverso.

É indiscutível que, muito mais do que qualquer outro Papa, inclusive na era moderna, Francisco sacudiu estruturas e transformou horizontes. Herdou em 2013 uma Igreja profundamente dividida, mas não fraquejou, nem se deixou refrear. Interveio na legislação canônica permitindo que qualquer leigo católico batizado, inclusive mulheres, chefie a maioria dos departamentos da administração central da Igreja. Foi quem mais nomeou mulheres para cargos sêniores no Vaticano.

Conta-se que, no conclave que o elegeu, Francisco era, no máximo, o que se chamava de “kingmaker”, isto é, um latino-americano com autoridade para direcionar determinado quantitativo de votos a um candidato competitivo. A maior evidência de que não lhe passava pela cabeça que seria eleito é haver desembarcado em Roma trazendo apenas uma mala com poucas roupas e uma passagem aérea de volta a Buenos Aires, comprada a tempo de chegar para as celebrações pascais.

Francisco, ao ser anunciado ao mundo, dispensou o anel de Papa, preferiu sua cruz de alpaca no lugar da cruz de ouro, além de não fazer questão dos sapatos vermelhos. Não quis morar no apartamento do Vaticano e sim em um quarto de hóspedes no Palácio de Santa Marta, aonde ficam os Cardeais. Visitou mais de 60 países. Estampava sempre um sorriso largo no rosto. Era gente como a gente. Primeiro Papa não europeu em 1.200 anos. Primeiro Papa das Américas. Primeiro jesuíta a ser eleito “Bispo de Roma” (outra denominação dos Papas). Entre as suas frases e momentos mais marcantes, aquele em que disse: “Sem justiça não existe paz. Sem justiça, a lei dos fortes se consagra sobre os fracos”.

Na atual composição do colégio cardinalício, com 138 eleitores, 110 foram nomeados por Francisco, o que demonstra a sua legítima preocupação em deixar um legado duradouro. Um legado, essencialmente, progressista, a lutar contra uma estrutura resistente ao avanço inclusivista. Um iluminista em um mundo cada vez mais arrastado à penumbra. Um realista esperançoso contra a incompreensão.

Se o pontificado de Francisco transformou como ele gostaria ou quiçá como pretendia o catolicismo nas suas mais arcaicas estruturas e o mundo por tabela, colaborando com um novo mindset, é algo para os historiadores responderem. Nesse momento de lastimar a sua perda, o que nos cabe é reconhecer o seu empenho para fazer a diferença no sentido de aproximar e reaproximar as pessoas, fazendo do cargo de Papa um ambiente de diplomacia construtiva.

Tenho comigo que de nada adianta ao indivíduo ser um seguidor exemplar de determinada religião ou credo, e, na prática, adotar outro modelo de comportamento. Para os católicos, ir à missa todos os domingos, comungar, recitar de memória os cânticos, porém, de volta à rotina, fazer o contrário do que a palavra de Deus ensina. Desse pecado Francisco, o Papa Sorriso, está seguramente absolvido. Que sua vida não termine com sua morte.

Gustavo Freire é advogado

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