Papa Francisco: trajetória, ensinamentos e impacto global
Em 12 anos de papado, o argentino Jorge Mario Bergoglio deixou legado de combate a conflitos no mundo, busca pelo diálogo e acolhimento dos excluídos

O papado de 12 anos de Jorge Mario Bergoglio, que adotou o nome de Francisco ao ascender ao trono de Pedro em 13 de março de 2013, representou um ponto de inflexão significativo na história da Igreja Católica.
Marcado por uma ênfase na misericórdia, na justiça social, no diálogo inter-religioso e em reformas estruturais, o pontificado de Francisco gerou tanto entusiasmo quanto resistência dentro e fora da Igreja.
Uma igreja pobre para os pobres
Desde o início, Francisco estabeleceu um tom distintamente humilde e pastoral. Sua escolha de nome, em homenagem a São Francisco de Assis, já sinalizava uma prioridade para os pobres e marginalizados.
Ele adotou um estilo de vida mais austero em comparação com seus predecessores, residindo na Casa Santa Marta em vez dos apartamentos papais e frequentemente demonstrando proximidade com pessoas em situação de vulnerabilidade.
Essa ênfase na "Igreja pobre para os pobres" permeou seu ensinamento e suas ações, com críticas frequentes ao consumismo, à desigualdade econômica e à indiferença diante do sofrimento humano.
Misericórdia e inclusão
Um dos pilares centrais do papado de Francisco foi a insistência na misericórdia como o coração do Evangelho.
Ele buscaou uma abordagem pastoral mais acolhedora e inclusiva, especialmente em relação a questões delicadas como o divórcio e o novo casamento, a comunidade LGBTQ+ e as pessoas marginalizadas pela sociedade.
A exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), publicada em 2016, gerou debates significativos ao abrir caminho para um discernimento pastoral mais individualizado em relação à participação dos divorciados recasados nos sacramentos.
Da mesma forma, suas declarações sobre a necessidade de acolher e integrar os homossexuais na Igreja, embora mantendo a doutrina tradicional sobre o matrimônio, sinalizaram uma mudança de tom e uma busca por maior compreensão.
Reformas estruturais e transparência
Consciente dos escândalos e da necessidade de modernização da Cúria Romana, Francisco embarcou em um ambicioso projeto de reformas estruturais.
A criação do Conselho para a Economia e da Secretaria de Economia visou aumentar a transparência e a responsabilidade na gestão das finanças vaticanas, combatendo a corrupção e o mau uso de recursos.
A reforma da Cúria culminou na promulgação da constituição apostólica Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho) em 2022, que reorganizou os dicastérios vaticanos com o objetivo de tornar a Igreja mais missionária e sinodal.
Essa reforma enfatizou o serviço e a colaboração entre clérigos e leigos.
Sinodalidade e participação
Francisco foi um forte defensor da sinodalidade, um processo de escuta e discernimento em que todo o "Povo de Deus" é chamado a participar na vida e na missão da Igreja.
Ele convocou um Sínodo sobre a Sinodalidade, um processo plurianual de consulta em nível local, nacional e universal, com o objetivo de repensar as estruturas de participação e tomada de decisão na Igreja.
Essa ênfase na escuta e no diálogo busca promover uma Igreja mais colegial e corresponsável.
Escândalos de pedofilia na igreja
Quando o papa Francisco tomou posse, a Igreja Católica estava imersa em um escândalo global de abuso infantil pelos padres e, ao mesmo tempo, tentava acobertar a situação.
Em dezembro de 2014, o papa Francisco estabeleceu um painel internacional com especialistas para recomendar como proteger os menores.
No entanto, a comissão foi envolvida em controvérsias desde o início.
Dois representantes dos sobreviventes de abuso renunciaram ao projeto em 2017, incluindo Marie Collins, que foi vítima de estupro por um padre na Irlanda aos 13 anos, que declarou "vergonhosa" a falta de cooperação dos membros do Vaticano.
A viagem do papa Francisco em janeiro de 2018 para o Chile representou um ponto de virada.
O papa Francisco inicialmente defendeu um bispo chileno contra denúncias de que ele teria acobertado crimes de um padre mais antigo, e pediu aos acusadores uma prova da sua culpa.
Mais tarde, o papa admitiu ter cometido "erros graves" no caso, algo nunca admitido antes por um papa. Ele convocou todos os bispos chilenos para o Vaticano, e, logo depois, todos apresentaram suas renúncias.
Em agosto de 2018, o papa foi criticado com uma virulência sem precedentes por seu suposto silêncio sobre o comportamento do influente cardeal americano Theodore McCarrick.
Este último, acusado de abusar sexualmente de menores, perdeu o título de cardeal antes de ser expulso pelo papa, uma punição sem precedentes na história da Igreja.
Dois anos depois, o Vaticano publicou uma longa investigação sobre McCarrick, admitindo erros na cúpula, mas eximindo Francisco.
Em fevereiro de 2019, o papa reuniu os chefes de 114 conferências episcopais de todo o mundo com o chefe das igrejas católicas orientais e superiores de congregações religiosas para uma cúpula de quatro dias sobre “a proteção de menores”.
Na conferência, houve relatos devastadores de sobreviventes de abuso e críticas contundentes de dentro da Igreja.
O cardeal alemão Reinhard Marx, um conselheiro próximo do papa, lançou a bomba de que os escritórios dos bispos poderiam ter destruído arquivos sobre suspeitos de abuso clerical.
O papa prometeu uma “batalha total” contra o assédio, comparando o abuso sexual de crianças ao sacrifício humano.
Em dezembro de 2019, o papa disponibilizou reclamações, testemunhos e documentos de julgamentos internos da Igreja para tribunais laicos. As vítimas puderam acessar seus arquivos e quaisquer julgamentos.
No mesmo ano, ele tornou obrigatória a denúncia de suspeitas de agressão ou assédio sexual às autoridades da Igreja - e qualquer tentativa de encobrimento.
Em 2021, a Igreja Católica atualizou seu Código Penal pela primeira vez em quase 40 anos para incluir uma menção explícita de abuso sexual por padres contra menores e pessoas com deficiência.
No entanto, as vítimas continuaram a reclamar que o clero ainda não era obrigado a denunciar o abuso às autoridades civis de acordo com os códigos da Igreja, e tudo o que era dito no confessionário permanecia sacrossanto.
Em suas viagens ao exterior, o papa Francisco se reuniu com sobreviventes de abuso, do Canadá à Bélgica, e regularmente pediu perdão.
Mas, embora tenha feito mais do que qualquer outro papa para combater o flagelo, ativistas dizem que ele nunca reconheceu o que poderiam ser as causas “sistêmicas” do abuso dentro da Igreja.
Ele foi criticado por não se encontrar com os autores de um importante relatório sobre abuso sexual na França e por pedir cautela na interpretação da afirmação de que cerca de 330.000 menores haviam sido abusados ao longo de 70 anos na Igreja.
Os críticos também dizem que ele deveria ter sido mais incisivo com Marko Rupnik, um padre esloveno e artista de mosaico de renome mundial acusado de abuso em uma comunidade de religiosas adultas na década de 1990.
Sob pressão, o papa renunciou a um estatuto de limitações em 2023 para permitir possíveis processos disciplinares.
Diálogo inter-religioso e paz
O diálogo inter-religioso foi outra marca distintiva do pontificado de Francisco.
Ele realizou encontros históricos com líderes de outras religiões, defendendo a colaboração em prol da paz, da justiça e do cuidado com a criação.
Sua encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos), publicada em 2020, clama por uma fraternidade universal e pela superação das divisões e do individualismo.
Francisco se posicionou como uma voz profética em um mundo marcado por conflitos, defendendo a diplomacia, o desarmamento e a construção de pontes entre povos e culturas.
Desafios e resistências
Apesar do entusiasmo que seu pontificado gerou em muitos, Francisco também enfrentou desafios e resistências significativas.
Setores mais conservadores da Igreja expressaram preocupações em relação a algumas de suas aberturas pastorais e reformas, temendo um relativismo doutrinal ou um abandono da tradição.
Críticas surgiram em relação à gestão de alguns escândalos de abuso sexual e à lentidão de certas reformas.
A complexidade das questões abordadas e a diversidade de opiniões dentro da Igreja tornaram o caminho das reformas nem sempre linear e sem controvérsias.
O legado em construção
O legado do Papa Francisco seguuirá em construção, mas já é possível identificar alguns de seus traços mais marcantes.
Sua ênfase na misericórdia e na inclusão, seu chamado à justiça social e à atenção aos marginalizados, seu impulso para reformas estruturais e para uma Igreja mais sinodal e missionária certamente terão um impacto duradouro.
Sua capacidade de comunicar o Evangelho de forma acessível e seu apelo à fraternidade universal o tornaram uma figura influente no cenário global, transcendendo as fronteiras da Igreja Católica.
No entanto, a profundidade e a durabilidade de suas reformas dependerão em grande parte do caminho que a Igreja trilhará nos próximos anos.
O pontificado de Francisco representa, inegavelmente, um tempo de renovação e de questionamentos para a Igreja Católica, buscando responder aos desafios do século XXI com a perene mensagem do Evangelho.
As viagens importantes do papa
O papado de Francisco foi marcado por uma série de viagens apostólicas que refletiram suas prioridades. Algumas de suas viagens mais significativas incluem:
- Brasil (2013): Sua primeira viagem internacional como Papa foi ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Esta viagem estabeleceu o tom de seu pontificado, com foco nos jovens e nos marginalizados.
- Lampedusa (2013): Ainda em 2013, Francisco fez uma visita à ilha italiana de Lampedusa, um ponto de chegada para muitos migrantes e refugiados. Este gesto simbólico destacou a crise migratória e a necessidade de acolhimento e solidariedade.
- Terra Santa (2014): Sua peregrinação à Terra Santa, visitando Jordânia, Israel e Palestina, enfatizou a importância do diálogo inter-religioso entre cristãos, judeus e muçulmanos e buscou promover a paz na região.
- Filipinas (2015): A visita às Filipinas atraiu multidões recordes e demonstrou a força da fé católica no continente asiático, além de abordar questões de pobreza e justiça social.
- Equador, Bolívia e Paraguai (2015): Nesta viagem à América Latina, Francisco pediu desculpas pelos crimes cometidos contra os povos indígenas durante a colonização e defendeu os direitos dos excluídos à "terra, teto e trabalho".
- Cuba e Estados Unidos (2015): Esta viagem histórica teve como objetivo construir pontes entre a Cuba comunista e os Estados Unidos, marcando um período de degelo nas relações bilaterais.
- México (2016): No México, o Papa abordou questões como corrupção, violência, pobreza e exclusão, além de fazer uma escala histórica em Cuba para se encontrar com o Patriarca Ortodoxo Russo Cirilo, um passo importante no diálogo ecumênico.
- Iraque (2021): Considerada uma de suas viagens mais arriscadas, a visita ao Iraque buscou levar conforto à comunidade cristã perseguida e promover a reconciliação e o diálogo inter-religioso em um país marcado por conflitos.
- Canadá (2022): Esta viagem teve um significado particular, pois Francisco se desculpou formalmente pelos abusos cometidos em escolas residenciais católicas contra crianças indígenas.
- Longa viagem à Ásia e Oceania (2024): Incluiu Indonésia, Papua-Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura, demonstrando a atenção do Papa para com as igrejas na Ásia e na Oceania e abordando temas de diálogo inter-religioso e cuidado com a criação.
Um papa conhecido pelas frases
Sobre a pobreza, disse: "Como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!" Fala foi em 16 de março de 2013, três dias após sua eleição
Também em torno da homossexualidade falou que, "Se uma pessoa é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?". Isso foi em 29 de julho de 2013, no avião, de volta do Brasil.
Ele também procurou abraçar as mulheres, dizendo, em 2014, que "As mulheres teólogas na Igreja são como os morangos em um bolo, sempre queremos mais [...], oferecem novas contribuições para a reflexão teológica."
Não esqueceu a luta climática e os povos originários: "O grito dos pobres, junto ao grito da Terra, veio da Amazônia. Depois dessas três semanas não podemos fazer de conta de não tê-lo ouvido." A fala foi em 2019, durante o Sínodo sobre a Amazônia, no Vaticano.
Causou perplexidade ao listar 15 "doenças" que ameaçam os prelados da cúria (os órgãos de governo da Igreja), como:
- "Alzheimer espiritual"
- "a petrificação mental e espiritual"
- "o coração de pedra"
- "excesso de planejamento e funcionalismo"
- "rivalidade e a vaidade"
- "esquizofrenia existencial"
- "a patologia da "fofoca" e da "intriga"
- "indiferença para com os demais"
- "rosto sombrio".
A fala ocorreu durante dua mensagem de Natal à Cúria, em 22 de dezembro de 2014.
Ao se referir ao "quarentenaço", o termo argentino para falar da crise dos que chegam aos 40 anos, o papa admitiu: "temos más tentações nesses momentos, tentações que nunca pensaríamos que teríamos". "Não se deve sentir vergonha, mas deve-se erradicá-las imediatamente", afirmou, em 2018.
Perguntado sobre liberdade de expressão dos cartunistas, no avião que o transportava a Manila, dias depois do ataque jihadista contra a redação da revista satírica francesa 'Charlie Hebdo' em Paris, disse: "Não se pode insultar a fé dos outros. Não se pode zombar da fé."
Não fugiu ao tema do aborto em caso de malformação do feto, quando, em 2018, disse que "No século passado, o mundo inteiro ficou escandalizado com o que os nazistas fizeram para para preservar a pureza da raça. Hoje, fazemos o mesmo com luvas brancas".
Cronologia do papa Francisco
- 17 de dezembro de 1936: Jorge Mario Bergoglio nasce em Buenos Aires, em uma família de imigrantes italianos, filho de um contador e uma dona de casa.
- 21 de setembro de 1953: Recebe seu chamado para se tornar padre. Ele mais tarde descreveu sentir-se movido a ir à igreja enquanto ia para um evento escolar, um dia que afirma ter mudado sua vida.
- 1957: Passa por uma cirurgia para remover parte de seu pulmão.
- 11 de março de 1958: Depois de estudar engenharia química na universidade, entra na Ordem Jesuíta como noviço.
- 13 de dezembro de 1969: É ordenado sacerdote.
- 31 de julho de 1973: Torna-se líder dos jesuítas da Argentina, uma posição que ele ocupa por seis anos.
- 1980: Em meio a tensões na Ordem Jesuíta, volta a trabalhar como padre paroquial e reitor em um colégio em San Miguel, perto da capital.
- 1986: Vai para a Alemanha e depois para a segunda maior cidade da Argentina, Córdoba.
- 1992: Retorna a Buenos Aires como bispo auxiliar.
- 28 de fevereiro de 1998: É nomeado arcebispo de Buenos Aires.
- 21 de fevereiro de 2001: É nomeado cardeal pelo papa João Paulo II.
- 13 de março de 2013: Eleito o 266º papa depois de seu predecessor Bento XVI renunciar. Ele escolhe o nome Francisco em referência a Francisco de Assis, patrono dos pobres.
- 8 de julho de 2013: Faz sua primeira viagem como sumo pontífice, para a ilha italiana de Lampedusa, uma importante porta de entrada de migrantes na Europa, onde critica a "globalização da indiferença". Três anos depois, ele traria de volta 12 famílias de um campo de migrantes em Lesbos, na Grécia.
- 11 de julho de 2013: Lança uma reforma do código penal do Vaticano para lutar contra o abuso sexual de menores e a corrupção dentro da Igreja Católica.
- 29 de julho de 2013: Sinaliza uma igreja mais tolerante quando, em um voo de volta do Brasil, declara: "Se alguém é gay e está buscando o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-lo?"
- 18 de junho de 2015: Francisco publica sua segunda encíclica, "Laudato Si'", dedicada ao ambientalismo. A carta incita à ação contra as mudanças climáticas.
- 12 de fevereiro de 2016: Tem um encontro histórico com o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Kirill, quase 1.000 anos após a cisão entre a Igreja Oriental e Roma.
- 23 de maio de 2016: Audiência histórica no Vaticano com o xeque Ahmed al Tayeb, o grande imã da prestigiada mesquita Al Azhar do Cairo.
- 11 de abril de 2018: Francisco reconhece "erros graves" em seu manejo dos casos de abuso sexual de crianças no Chile e pede perdão.
- 22 de setembro de 2018: Anuncia o primeiro acordo da história entre a China e a Santa Sé sobre a nomeação de bispos.
- 27 de março de 2020: Com grande parte da Europa fechada devido à pandemia de covid-19, Francisco faz um discurso "Urbi et Orbi" sozinho na deserta Praça de São Pedro.
- 21 de outubro de 2020: Em um documentário, diz que é a favor das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo.
- 6 de março de 2021: Durante a primeira visita papal ao Iraque, encontra-se com o grande aiatolá Ali al Sistani.
- 4 de julho de 2021: Passa por uma cirurgia de cólon bem-sucedida e fica hospitalizado por 10 dias.
- 5 de junho de 2022: Entra em vigor a nova Constituição Apostólica, completando uma grande reforma da governança da Igreja que ele iniciou quando assumiu o cargo.
- 5 de janeiro de 2023: Preside o funeral de Bento XVI na Praça de São Pedro.
- 29 de março de 2023: É internado por uma infecção respiratória e passa três noites no hospital.
- 7 de junho de 2023: É hospitalizado para uma cirurgia de hérnia e permanece por nove noites.
- 3 de setembro de 2024: Aos 87 anos, embarca em uma viagem de 12 dias, a mais longa de seu papado, para Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor Leste e Singapura.
- 14 de fevereiro de 2025: É internado no hospital para exames e tratamento de bronquite.
- 21 de abril de 2025: Morre o papa Francisco aos 88 anos.