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O Réquiem de Mozart

O professor Mozart, fez a defesa das PPPs como saída para a melhoria da qualidade da educação, em artigo publicado na edição de 31 de março neste JC.

Por FLÁVIO BRAYNER E PAULO RUBEM SANTIAGO Publicado em 15/04/2025 às 0:00 | Atualizado em 15/04/2025 às 10:44

Acho que as pessoas da minha geração, jovens em 1968, não conseguem esquecer aquelas cenas da polícia batendo em estudantes e professores que, em passeatas pacíficas, lutavam pelo fim da ditadura, denunciando suas atrocidades, praticadas sobretudo contra as instituições e pessoas que... pensam! Vieram as cassações de professores, exílio do pensamento, assassinatos de estudantes, 477, AI-5... O mais surpreendente é ver, numa situação de relativa tranquilidade democrática, simples civis descendo dos seus carros, em plena Rua da Aurora, para agredir, xingar e ameaçar professores e alunos da rede estadual, pelo simples - e inacreditável!- fato de reivindicarem melhores condições de trabalho e de vida (num estado que se pretende ter alcançado altos índices educacionais nas avaliações institucionais): salas de aula adequadas; plano de cargos e carreiras justo e compatível com a titularidade dos professores; piso salarial legal e já definido (e não cumprido! 1,67% de aumento é desmoralizante!). O interessante, sociologicamente falando, é ver a repetição da violência persecutória se exercendo, agora por simples civis auto-entronizados "defensores da ordem pública" violentando estudantes e professores. Quando a cultura, a educação e o pensamento são violentados, é porque outros tempos estão chegando!

Nossa época ainda acredita que podemos ser "salvos" pela Educação (como em outras épocas, pela Religião, pela Razão, pela Revolução...!) e, claro, pela... Tecnologia! O problema é que como a educação não está nos "salvando", aparecem agora os arautos da nova soteriologia. Breve: não é a educação que vai nos salvar, são alguns grupos que vão "salvar" a educação de seus descaminhos e desastres. E aí entram os defensores do Gerencialismo, Meritocracia, Empreendedorismo, Empregabilismo, Tecnicismo, Privatização, Parcerias Público-Privadas, Voucher público para escolas privadas, formação para o Mercado, Itinerários Formativos, EAD... O cardápio é longo e, na sua retaguarda encontram-se os grandes grupos empresariais que querem, não exatamente fazer da educação um instrumento da democracia, da igualdade e da equidade social, promovendo um tipo de educação que nos fornecesse os predicados da vida republicana (Diálogia, Crítica, Pensamento, Julgamento, Decisão). SALVAR A EDUCAÇÃO DOS EDUCADORES É, DIGAMOS, O IMPERATIVO CATEGÓRICO DESSES GRUPOS!

Quase no mesmo momento em que aqueles estudantes e professores se reuniam em protesto na Rua da Aurora, o ex-Reitor da UFPE, meu colega Mozart Ramos, por quem tenho grande simpatia pessoal (e grandes divergências pedagógicas!), publicava um artigo nesse JC defendendo seu projeto de salvação: as parcerias público-privadas! Na verdade, leio aquele artigo como um "Réquiem", uma missa para os mortos com seus movimentos (Kyrie, Dies Irae, Agnus Dei...), em que se enterra uma ideia: a da FORMAÇÃO HUMANA!

Aliás, a histórica construção de políticas públicas para a educação, seja para a educação básica, seja para o ensino superior, na graduação e na pós-graduação, vira e mexe aparecem soluções mágicas, agora denominadas de PPPS (Parcerias Público-Privadas), típica realização de interesses privados com dinheiro público, vendidos com o objetivo de "melhorar a qualidade da educação". A TÉCNICA DE CONSTRUÇÃO TEXTUAL que favorece esses interesses é conhecida e se repete ano após ano.

Em primeiro lugar, destacam-se os indicadores educacionais registrados no país, buscando-se evidenciar a crise do ensino público e a necessidade da busca de soluções (via PPPS, claro!) para sua melhoria. No entanto, pouco ou nada se apresenta como razões da precarização desses indicadores, em especial frente ao crônico subfinanciamento da educação pública. Em segundo lugar, com referências, para dar-lhe credibilidade, a algum Prêmio Nobel de Economia (esse "Nobel" é uma invenção do Banco Central da Suécia e não uma criação e escolha da Fundação Alfred Nobel!). Recorrendo-se então ao premiado abordam-se suas referências à importância da "inteligência emocional" para o desenvolvimento dos alunos em todas as suas dimensões. Adiciona-se, mais à frente, uma pitada de bons desempenhos educacionais em países como Singapura, Coreia do Sul, Finlândia e Japão (quanto se paga por lá aos professores?) e ainda China, Hong Kong, Taiwan e Macau. Por fim, recorre-se a figuras que são unanimidade nacional, como o Betinho (o sociólogo Herbert de Souza, o irmão do Henfil imortalizado na canção "O Bêbado e o Equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc) para se afirmar que o Brasil precisa ter fome de educação.

Com essa sofisticada construção textual o Professor Mozart, fez a defesa das PPPs como saída para a melhoria da qualidade da educação, em artigo publicado na edição de 31 de março último, no Jornal do Commercio. Na verdade, o ex-Magnífico Reitor trouxe em seu texto associações que, às claras, buscam desqualificar a gestão pública da educação para, então, justificar a defesa das PPPs, que são, obviamente, a forma jurídica para a promoção dos interesses das empresas e fundações privadas (nenhuma dessas instituições "filantrópicas" trabalha de graça para Estados ou Prefeituras) em nome da promoção da qualidade da educação pública no país. Não desconheço que em tais instituições há quadros profissionais com graduação, mestrado ou doutorado, mas isso, em princípio não lhes coloca em posição superior aos que vem lutando há anos, nas redes públicas, onde há também profissionais com idênticas titulações, pela realização das metas e estratégias dos sucessivos Planos Nacionais de Educação.

No país da histórica ANPED, da ANPAE e da FINEDUCA, entre outras, nossas entidades nacionais de pesquisa em educação, defender PPPs para a melhoria da qualidade da educação soa a um Réquiem desafinado. Faltou ao Professor Mozart reconhecer que muitos dos países citados em seu texto fizeram autênticas revoluções nos sistemas de financiamento da educação, construindo sólidas políticas públicas de valorização de seus profissionais e de manutenção da escola pública, algo consideravelmente distinto de décadas de arrocho salarial e austeridade fiscal vigentes no país.

"-Kirie eleison!" (Senhor, tende piedade!)

Flávio Brayner e Paulo Rubem Santiago são professores da UFPE

 

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