Economia | Notícia

Vale do São Francisco teme demissões de trabalhadores treinados com tarifaço dos EUA

Atividade exige trabalhadores qualificados do cultivo ao embarque.Perda de empregos especializados pode comprometer a cadeia da fruticultura na região

Por Adriana Guarda Publicado em 01/08/2025 às 21:01

Clique aqui e escute a matéria

Antes de cruzarem o oceano rumo aos Estados Unidos, mangas e uvas passam por muitas mãos no Vale do São Francisco. No plantio, na colheita ou nos packing houses (centrais de embalagem), os trabalhadores sustentam a engrenagem da fruticultura irrigada na região. taxação de 50% imposta pelos Estados Unidos ao Brasil, que entra em vigor no próximo dia 7, ameaça travar as exportações, derrubar preços no Brasil e provocar um efeito dominó sobre a cadeia que emprega mais de 120 mil pessoas.

Maior polo de fruticultura irrigada do Brasil, o Vale do São Francisco é responsável por 90% das exportações de manga e 98% dos embarques de uva do País. Segundo a Valexport - Associação dos Produtores e Exportadores de Hortigranjeiros e Derivados do Vale do São Francisco, além dos 120 mil trabalhadores diretos, o setor também contrata mão de obra temporária dos safristas (trabalhadores sazonais).

A mão de obra, aliás, é um dos desafios do Vale, que vem crescendo em área plantada com manga e uva nos últimos anos, mas sem que o número de trabalhadores acompanhe. Como a fruticultura irrigada é a principal geradora de emprego da região, a demissão pode significar deixar famílias inteiras sem renda, já que na maioria das vezes marido e mulher atuam na atividade.  

Mulheres na exportação

Com a taxação prestes a entrar em vigor, o temor é que o cenário afete diretamente a cadeia de valor da fruticultura, pressionando preços no mercado interno, comprometendo a renda das famílias e levando a uma desaceleração na produção. “Essa medida penaliza diretamente o trabalhador do Vale. É uma cadeia que sustenta milhares de famílias com base em mão de obra especializada. O que está em jogo aqui é emprego, renda e a capacidade de manter uma operação que gera divisas para o Brasil”, alerta José Gualberto Almeida, presidente da Valexport. 

A fruticultura irrigada do Vale tem um modelo produtivo consolidado, com divisão tradicional de funções: homens e mulheres trabalham no campo e a presença feminina é maioria nos packing houses. Na embalagem elas são responsáveis por selecionar, classificar e embalar as frutas para atender às exigências do mercado internacional — que envolvem certificações sanitárias, rastreabilidade e padrão de qualidade. A delicadeza do processo de manuseio, segundo os produtores, consolidou a atuação feminina nas centrais de embalagem.

Divulgação
Exportação de Manga - Divulgação

A cadeia envolve ainda serviços de irrigação de precisão, transporte refrigerado, controle de qualidade e logística portuária. Todo esse sistema, construído ao longo de décadas, depende de planejamento detalhado e estabilidade nos contratos internacionais.

Atualmente, 77 mil toneladas de manga estão prontas para embarque em 2.500 contêineres, parados nos portos do Nordeste, à espera de um acordo que mantenha a taxa zero para exportação ao mercado americano. O período crítico de exportação da manga vai de agosto a dezembro — janela em que o Brasil entra praticamente sozinho nos Estados Unidos, já que o México encerra a safra no início do segundo semestre e o Equador só começa a embarcar volumes maiores no fim de setembro.

“Trabalhamos numa janela muito específica. Somos quase os únicos nesse período, e agora somos taxados, enquanto México e Equador seguem isentos”, diz Gualberto.

Excedente no mercado interno

A consequência imediata da taxação, segundo os produtores, é a reversão das cargas para o mercado interno, o que deve provocar queda nos preços pagos ao produtor e compressão da margem de lucro. A fruta brasileira é enviada também para países como Japão, Coreia do Sul, Argentina e Chile, mas os Estados Unidos representam a melhor remuneração e absorvem parte significativa da produção, especialmente no caso da manga.

Segundo a Abrafrutas, em 2024 o Brasil obteve US$ 1,3 bilhão em exportações de frutas, sendo US$ 350 milhões apenas com manga. No acumulado de 2025, as exportações de manga já geraram US$ 99 milhões, e boa parte desse volume está em risco caso a medida norte-americana não seja revertida.

“Quando se reduz a exportação, inevitavelmente aumenta a oferta interna e o preço cai. Isso impacta toda a cadeia: do produtor ao trabalhador, passando pelas cooperativas e pelas pequenas propriedades familiares”, reforça Gualberto.

Ameaça de demissões

No caso da uva, o impacto da taxação também preocupa, embora em menor escala, já que o mercado norte-americano responde por cerca de 25% das exportações da fruta. Segundo o gerente comercial da Coopexvale (Cooperativa de Produtores Exportadores do Vale do São Francisco), Cristhian Diaz, o valor pago pelos americanos por determinadas variedades pode ser até 80% superior ao de outros mercados, tornando o destino muito atrativo para o produtor.

Foto: Alexandro Auler/Acervo JC Imagem
As reduções das receitas foram de 12,75% na uva e de 7,25% na manga, segundo associação de produtores e exportadores de Hortigranjeiros do Vale - Foto: Alexandro Auler/Acervo JC Imagem

“Para essas variedades, o mercado americano é estratégico. Sem ele, teremos que redirecionar para Europa ou mercado interno, onde o valor é menor. Isso afeta diretamente o faturamento e pode comprometer a viabilidade de manter a operação no mesmo ritmo”, explica Diaz.

De acordo com a Coopexvale, considerando o Vale como um todo, a cultura da uva ocupa entre 15 mil e 16 mil hectares, com média de três a quatro trabalhadores diretos por hectare — o que representa entre 45 mil e 64 mil empregos diretos. Se houver desaceleração nas exportações, a tendência é de redução de produção e consequente corte de pessoal, especialmente entre os contratados por safra.

“Todos são trabalhadores formalizados. Mas se o mercado deixa de ser interessante, a economia se ajusta por conta própria e as empresas podem ser forçadas a demitir”, diz Diaz.

 “Retaliação não é solução”

Apesar do impacto severo, os produtores do Vale defendem uma resposta diplomática articulada e sem bravatas. Para Gualberto, o momento exige negociação com inteligência, e não retaliações comerciais que poderiam piorar o cenário.

“Já tivemos crises piores, como a da Covid-19. A retaliação não é solução. Pode até aumentar nossos custos, com insumos, defensivos e fertilizantes. O caminho é o diálogo firme e técnico com os americanos. É possível sensibilizá-los. No fundo, essa medida penaliza também o consumidor dos EUA, que terá menos opções e preços mais altos”, afirma.

O dirigente sugere ainda que o governo brasileiro adote medidas emergenciais, como linhas de crédito especiais, revisão de prazos para pagamento de tributos e apoio à manutenção de empregos, até que se alcance uma solução definitiva.

“Preservar empregos é prioridade. O conhecimento acumulado desses trabalhadores é um patrimônio das empresas. Não dá para desmontar uma cadeia como essa sem consequências sérias para toda a região”, conclui Gualberto.

Compartilhe

Tags