Mia Couto: 'O termo inteligência artificial é um erro, pois inteligência implica sensibilidade'
De volta ao Recife para a 15ª Bienal Internacional do Livro de PE, autor mais traduzido de Moçambique concedeu entrevista exclusiva ao JC

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O vínculo do Brasil com Mia Couto transcende a língua portuguesa. O escritor moçambicano reconhece sua dívida com mestres da literatura brasileira, como Jorge Amado e Guimarães Rosa, que marcaram sua visão sobre o fazer literário.
Vencedor do Prêmio Camões, ele retornou ao Recife para a 15ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, participando de um diálogo com a poeta Cida Pedrosa, neste sábado (11). Antes, concedeu ao JC uma entrevista exclusiva em seu hotel.
Em seu romance mais recente, "A Cegueira do Rio", Couto revisita as vésperas da Primeira Guerra Mundial em Moçambique, onde um povo, pressionado pelo poderio militar alemão e pela colonização portuguesa, luta para preservar sua memória e cultura através de um pilar essencial da identidade humana: a língua.
O tema se impõe com ainda mais força na era da inteligência artificial generativa, à medida que alguns intelectuais alertam para o risco de transferirmos o poder da linguagem às máquinas.
"Acho que pode estar em risco a riqueza da linguagem em tudo: na semântica, na capacidade de argumentação, naquilo que faz com que ela seja realmente nossa. Mas não acredito que se possa apontar um único culpado, como se a máquina fosse o único vilão, seja o computador, o Google ou a inteligência artificial", diz o escritor.
Na conversa, ele também abordou o impacto da tecnologia no processo criativo, a função social da literatura em Moçambique e a importância do intercâmbio cultural e diplomático entre Brasil e os países africanos de língua portuguesa.
Entrevista Mia Couto, poeta e escritor
Como africano que escreve em português, como você percebe a sua relação com a literatura brasileira? Você costuma mencionar autores como Jorge Amado e Guimarães Rosa.
Sim. Há muitos poetas e escritores brasileiros de prosa que me influenciaram, a mim e a outros escritores africanos de língua portuguesa. É preciso lembrar que há cinco países em África que falam e escrevem em português, e todos foram muito influenciados pelo Brasil. Quero falar de Jorge Amado porque é o caso mais emblemático.
Jorge Amado fez nascer uma corrente, nos anos 1960 e início dos anos 1970, em Cabo Verde, em Angola, em Moçambique, na Guiné-Bissau, em São Tomé. Toda essa gente foi despertada pela possibilidade de escrever em outro português, porque o português que nos era oferecido era apenas o de Portugal. Descobrimos um outro português, aquele que refletia a nossa própria vivência de africanos. Então, há uma dívida que eu e os meus colegas da minha geração temos com o Brasil.
Você teve algum contato marcante com a literatura de Pernambuco?
Acho que Ariano Suassuna é um deles. O poeta João Cabral de Melo Neto me marcou muito também, porque é uma poesia ao mesmo tempo muito cerebral e muito bem pensada, mas também tão verdadeira, tão pura. Eu o tomei como um grande mestre.
Em "A Cegueira do Rio", você parte do contexto da Primeira Guerra na África para falar da importância da preservação da língua. Com o desenvolvimento da Inteligência Artificial, acha que essa preservação da língua em sua originalidade está em risco?
Acho que pode estar em risco a riqueza da linguagem em tudo: na semântica, na capacidade de argumentação, naquilo que faz com que ela seja realmente nossa, não é? Acho que há algo que se pode perder, e que já está se perdendo.
Mas não acredito que se possa apontar um único culpado, como se a máquina fosse o único vilão, seja o computador, o Google ou a inteligência artificial. Não é completamente honesto colocar toda a culpa nesse campo.
O que faz falta é um convívio mais próximo, uma troca mais viva entre gerações, entre pais e filhos. O tempo dedicado ao encontro pessoal, aquele que não é intermediado pelo celular ou por qualquer outra máquina. Precisamos disso. Precisamos resgatar esse espaço de contato íntimo entre as pessoas.
Sobre o seu processo criativo hoje, com tantas evoluções tecnológicas, algo mudou?
Não. Eu comecei a escrever os meus primeiros livros numa máquina de escrever daquelas tipográficas, e quando surgiu o computador, mudei. Agora já não saberia mudar de novo... não posso imaginar fazer isso outra vez.
Acho que, às vezes, ficamos assustados com qualquer coisa que represente uma inovação. Parece que o mundo está sendo refundado. Mas eu sou muito grato a esse tipo de tecnologia. Para mim, a questão é entender até que ponto essas tecnologias não nos anulam enquanto seres criativos, enquanto seres capazes de uma intervenção que só os humanos podem ter.
Para mim, chamar essa tecnologia de inteligência artificial já é um erro. Quer dizer, uma máquina não é inteligente. A inteligência implica sensibilidade, criatividade, imaginação, capacidade de sentir. Uma máquina é regida por uma lógica mecânica; nós temos uma lógica orgânica. Somos feitos de coisas vivas, não de peças. Portanto, acho que há um limite aí que ficará bem evidente: nós não podemos ser substituídos.
Vivemos um tempo em que as redes sociais e o audiovisual dominam muito do que consumimos. Você pensa sobre como isso tem transformado os hábitos de leitura?
Acho que sim, que isso tem impacto em tudo: na capacidade de concentração, na dispersão que a própria máquina provoca. O celular nos faz saltitar, fragmentando muito o tempo. Acho que isso também me afetou. Hoje tenho menos capacidade de me concentrar num texto, porque, de alguma maneira, já fui viciado por essa coisa de tocar e fazer surgir uma imagem, com a história sendo comprimida.
Provavelmente isso terá algum reflexo na própria forma de construção literária. Acho que os escritores terão de responder a esse apelo do texto breve, esse post curto, esse pequeno vídeo, criando novas formas de escrita.
Livros como "Terra Sonâmbula" e o próprio "A Cegueira do Rio" trazem os conflitos do Moçambique como pano de fundo. Ao escrever, você sente um compromisso social com Moçambique?
Claro. É o meu lugar — o lugar que me fez ser escritor. Mas devo dizer que não faço isso por missão; não tenho a ideia de que “agora vou escrever algo para defender Moçambique, ou a mulher, ou uma minoria”. Não funciona assim.
Ou isso está dentro de mim e passa naturalmente para o texto, ou não acontece. Não é uma questão de cumprir a incumbência de uma missão qualquer.
Na sua visão, Brasil e África estão se reaproximando nesse novo contexto político? Ou você sente que essa relação enfrenta obstáculos que vão além dos governos?
Sim, eu acho que essa relação sempre existiu. O Brasil, historicamente, está mais preocupado com a sua própria relação interna, com a sua memória africana, porque já não se trata apenas de uma relação externa, mas de uma relação do Brasil consigo mesmo.
O governo atual se mostrou mais atento a esse assunto. Resgatar a memória da ancestralidade africana foi positivo para nós, africanos. Sempre foi importante.
Mas ainda há muito a fazer, porque é preciso entender que o Brasil ocupa outro lugar estratégico no mundo, está em outra geografia e tem outras prioridades diplomáticas. Não é algo que se deva levar a mal: o Brasil simplesmente trata a África em um outro plano da sua política externa.
E na literatura, como você enxerga hoje o intercâmbio entre escritores e leitores do Brasil e dos países africanos de língua portuguesa? Essa ponte está mais viva?
Hoje há uma presença maior de escritores moçambicanos e africanos, de modo geral, no Brasil. Existe uma editora que merece destaque, chamada Capulana, que está publicando obras de autores africanos.
Também estamos tentando começar a publicar e convidar autores brasileiros para nos visitar e terem seus trabalhos publicados lá. Portanto, existe um movimento por iniciativa de pequenas organizações e pessoas individuais, não como resultado de uma política oficial, mas por iniciativas de gente particular.
Você destacaria algum nome na nova literatura dos países africanos lusófonos hoje?
Eu conheço pouco do que se passa em Cabo Verde, Angola, etc. E isso é uma realidade triste. Falamos muito sobre o Brasil, mas mesmo entre nós, nos cinco países africanos, temos pouco contato uns com os outros. Não sabemos o que está sendo publicado de novo em Angola ou na Guiné.
No caso de Moçambique, posso dizer que há muitos nomes, muita gente aparecendo, e houve um movimento bastante significativo de editoras publicando por lá.