Crítica: 'O Agente Secreto' usa o thriller político para expor as lacunas da memória no Brasil
Duplamente premiado em Cannes, filme de Kleber Mendonça Filho mostra como o nosso passado pode ser apagado ou distorcido pela pressa do presente
 
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Kleber Mendonça Filho continua criando um cinema autoral e peculiar em "O Agente Secreto", duplamente premiado no Festival de Cannes e que chega ao circuito comercial em novembro.
Assim como "Bacurau" (2019) utilizava o faroeste para refletir sobre questões brasileiras, o longa protagonizado por Wagner Moura agora aposta no thriller político. A atmosfera lembra os suspenses de espionagem hollywoodianos, mas sempre com um interessante tempero brasileiro.
Desde o título até a campanha de divulgação, a obra carrega as marcas do chamado "cinema de gênero". Ainda assim, Mendonça Filho prefere, mais uma vez, subverter expectativas.
"O Agente Secreto" utiliza desse thriller político como ferramenta para chegar a um tema central, bastante presente na filmografia do diretor: o que fazemos com a nossa memória (pessoal ou coletiva) e a dificuldade em lidar com ela em um país como o Brasil.
Fragmentos de uma busca
A trama se passa em 1977 e acompanha Marcelo (Wagner Moura), professor universitário de tecnologia que vive em São Paulo e retorna ao Recife durante o Carnaval. Seu objetivo é buscar o filho e deixar o país.
Ele se hospeda em um condomínio de refugiados e passa a trabalhar em um instituto de identificação, em busca do documento de sua mãe. As razões por trás dessas movimentações, no entanto, não são reveladas de imediato, mantendo um suspense ao longo da primeira hora do filme.
 
                
             
                
             
                
             
                
            O roteiro, assinado também por Mendonça, não se apressa ao longo de suas duas horas e quarenta minutos.
Quem esperar por cenas seguidas de ação pode se frustrar: esse tempo é usado para mergulhar o espectador em uma direção de arte minuciosa, que recria com lirismo o Recife dos anos 1970 — dos prédios do Centro a detalhes como uma camiseta da Pitombeira de Olinda ou da Universitária Banorte.
Nesse percurso, conhecemos ainda uma galeria de personagens, entre eles os moradores do condomínio. O grupo é liderado pela carismática Dona Sebastiana (Tânia Maria, atriz potiguar de 76 anos revelada em "Bacurau"), responsável por momentos de humor que aliviam a tensão.
Tom alegórico sobre a repressão
Cada personagem parece carregar uma história não contada, a exemplo do papel da pernambucana Hermila Guedes. Em muitos sentidos, "O Agente Secreto" é um filme sobre silêncios. O próprio termo "ditadura" jamais é citado.
Entre telefonemas suspeitos, identidades falsas e conversas cheias de desconfiança, a narrativa se constrói como uma investigação que o público também precisa decifrar. Esse não é um filme "mastigado".
 
                
            Enquanto isso, o Carnaval explode nas ruas. O Cinema São Luiz exibe "A Profecia" (1976) e "Tubarão" (1975), justamente quando um tubarão aparece em Candeias com uma perna humana no estômago.
O detalhe macabro, distorcido por uma ação policial, dá origem a uma explicação para a lenda urbana da "perna cabeluda", que marcou o imaginário recifense na época. Ao mesmo tempo, funciona como metáfora para o poder da imprensa de criar narrativas enquanto silenciava tantas outras durante a ditadura.
Reflexão sobre memória
O longa funciona como um grande mosaico de histórias, conduzido até um desfecho que mistura clímax sangrento — tiros e perseguições — e um anticlimax melancólico.
Em paralelo, numa linha temporal atual, duas jovens pesquisadoras tentam desvendar o passado de Marcelo a partir de antigas gravações.
Essa ponte entre passado e presente é uma marca recorrente no cinema de Mendonça, e aqui é utilizada para costurar as memórias pessoais do protagonista ao tecido coletivo da história brasileira.
É quando "O Agente Secreto" revela-se menos um suspense sobre agentes e perseguições, e mais uma reflexão melancólica sobre como o passado pode ser apagado ou distorcido pela pressa do presente, pelas forças políticas e econômicas ou simplesmente pelas lacunas da própria lembrança.
É uma discussão rara no cinema brasileiro contemporâneo, e que Kleber Mendonça Filho conduz com estilo inconfundível.
 
                         
                                                                                    
                                            