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'Mundo vinha avançando e estagnou', diz Dan Stulbach, que apresenta texto de Shakespeare no Recife

Adaptação de 'O Mercador de Veneza' explora o antissemitismo: 'Shakespeare está presente, mas nunca tão presente quanto agora, com essa montagem'

Por Emannuel Bento Publicado em 24/07/2025 às 17:34

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Antissemitismo, racismo e guerras motivadas por interesses econômicos. Temas que atravessam séculos e permanecem vivos, infelizmente, como reflexo da própria natureza humana. São conflitos que também estão no centro de "O Mercador de Veneza", clássico de William Shakespeare que ganha nova montagem com direção de Daniela Stirbulov.

No palco, Dan Stulbach assume o papel de Shylock, o agiota judeu que se vê no centro de uma trama de dívidas, vingança e preconceito. Na história, o mercador Antônio contrai um empréstimo para ajudar um amigo e, como garantia, oferece uma libra de sua própria carne. O desenrolar do acordo leva a um julgamento tenso, em que justiça e intolerância colidem.

"Tenho a impressão de que o mundo vinha avançando, mas, de algum tempo para cá, estagnou - e, em alguns aspectos, retrocedeu", afirma o ator, em conversa com o JC.

Com sessões esgotadas neste fim de semana na Caixa Cultural Recife, a peça volta ao cartaz entre os dias 31 de agosto e 2 de outubro. A seguir, Dan Stulbach comenta, em formato pingue-pongue, o desafio de dar vida a Shylock e as camadas atemporais do texto de Shakespeare.

Entrevista - Dan Stulbach

Como é sua relação com Shakespeare?
Minha relação com Shakespeare começou quando começou minha relação com o teatro. Não só porque foi a primeira peça que eu fiz — "O Sonho de uma Noite de Verão" — mas porque, depois, quando fui estudar teatro, por sorte, tinha a matéria de Shakespeare, então passei a ler todas as peças. Li obstinadamente, durante uma fase minha em que me encantei pelo teatro, antes de decidir ser ator.

Eu tinha muito medo de ser ator, porque era uma escolha muito fora da minha família, muito fora do que eu achava que poderia, do que me era permitido na vida. Mas passei a ler obstinadamente livros de teatro, e Shakespeare foi assim. Li tudo no início e, depois, recorrentemente. Também via peças, principalmente fora do país, quando tive oportunidade, diversas montagens. Aqui no Brasil, também algumas montagens de Shakespeare que eu acho que foram maravilhosas. Lembro do grupo Galpão fazendo "Romeu e Julieta".

RONALDO GUTIERREZ/DIVULGAÇÃO
Dan Stulbach no papel do agiota judeu Shylock em 'O Mercador de Veneza' - RONALDO GUTIERREZ/DIVULGAÇÃO

Shakespeare está presente, mas nunca tão presente quanto agora, com essa montagem do "Mercador de Veneza". Todas as montagens que eu conhecia pelo vídeo, comecei a ler. Estou absolutamente encantado com esse universo. Se relacionar com o teatro é se relacionar com Shakespeare.

E como tem sido interpretar o Shylock, uma figura tão complexa e ambígua da obra de Shakespeare?
Algumas pessoas consideram Shylock um dos personagens mais importantes de Shakespeare, ou dos mais — estaria entre os dez mais. Acho fantástico, porque ele não só diz coisas, simboliza coisas, mas é um personagem de difícil execução, e eu queria isso para mim.

Queria esse desafio artístico de personagem complexo, um personagem em que eu pudesse também trabalhar emoções em grande dimensão. Não de uma maneira contida, mas não dentro do naturalismo, realismo; queria também ter uma dimensão maior, shakespeariana, de algumas emoções, de alguns gestos, trabalhar nesse autorregistro. É algo que o teatro me permite, se houver verdade. Então, Shakespeare é um personagem que me permite tudo, que me desafia o tempo todo, e nunca se completa — então, é muito bom.

A montagem atualiza a história para os anos 90, período marcado por grandes transformações globais. Como esse novo contexto afetou a maneira como você construiu o personagem?
Acho que todo o intuito, a ideia de ir para os anos 90, foi da diretora Daniela Stirbulov, no sentido de trazer alguma contemporaneidade para o espetáculo, porque onde essa história poderia acontecer hoje. Trazendo para os anos 90, ele fica menos distante. Nos figurinos, na maneira de falar, nos acontecimentos, tudo fica mais próximo.

RONALDO GUTIERREZ/DIVULGAÇÃO
Dan Stulbach no papel do agiota judeu Shylock em 'O Mercador de Veneza' - RONALDO GUTIERREZ/DIVULGAÇÃO

Não acho os anos 1990 uma década tão interessante, mas ela acha. Então, a escolha foi dela. Acho que isso é bom também, porque, com o acréscimo do vídeo e da música, das batidas e das músicas que ela escolheu, tudo fica mais próximo dos dias de hoje.

A peça aborda temas como antissemitismo e intolerância. Você acha que são assuntos delicados diante de uma época de discursos polarizados como a nossa?
Acho que são delicados, mas necessários. São importantes de serem falados, discutidos, porque a gente tem que lutar contra isso, contra o preconceito — seja ele qual for, em relação a qualquer minoria. Tenho a impressão de que o mundo vinha avançando e, de algum tempo para cá, parou, e, de alguma maneira, tem retraído, retrocedido. Acho que é uma luta mesmo. Uma luta contra o poder, contra a ignorância, contra a opressão. Se um espetáculo de teatro pode tratar disso, ainda mais amparado por um texto como esse, acho que ele não deve fugir — muito pelo contrário, deve-se falar sobre isso.

As melhores pessoas são as que vão ao teatro. São as pessoas que querem mudar, que podem, de alguma maneira, significar a melhor parte do mundo, o lado bom da força. Então não deveriam ser só elas a ouvir ou ver uma peça que trata desse assunto, claro. Mas é um começo, é uma tentativa, é uma ideia, é uma provocação.

O que mais te impressiona na atualidade dessa obra?
Vou começar pela própria palavra que você colocou na pergunta: "atualidade". A história, como ela é bem contada. O fato de conseguir ter uma história bem contada sem abrir mão da poesia, da elaboração, da inteligência. Ela é acessível a todo mundo, mas não é fácil. Não é óbvia, surpreende as pessoas com personagens que não são feitos de uma coisa só.

RONALDO GUTIERREZ/DIVULGAÇÃO
Dan Stulbach no papel do agiota judeu Shylock em 'O Mercador de Veneza' - RONALDO GUTIERREZ/DIVULGAÇÃO

Eles são tridimensionais, múltiplos, humanos, ambíguos, contraditórios, profundamente humanos. Acho que ter uma história onde não há herói nem vilão, já em si, e amparada por uma poesia assim, com uma história boa, já é maravilhoso. É muito difícil encontrar algo assim.

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