Ana Maria Gonçalves: A quebra de um paradigma na Academia Brasileira de Letras
Quase um século e meio depois da sua fundação, a ABL elege uma mulher negra pela primeira vez para compor o grupo de imortais da literatura

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A Academia Brasileira de Letras (ABL), desde sua fundação em 20 de julho de 1897, levou 80 anos para eleger sua primeira mulher, Rachel de Queiroz, em 4 de agosto de 1977. Passados 48 anos desse marco, a instituição assistiu, nesta quinta-feira, 10 de julho de 2025, à eleição de Ana Maria Gonçalves, a primeira mulher negra a ocupar uma de suas cadeiras.
Autora de obras notáveis como Ao Lado e À Margem Do Que Sentes Por Mim (2002) e o célebre Um Defeito de Cor (2006), Gonçalves disputou a vaga com outros 13 candidatos — dez homens e três mulheres —, garantindo 30 dos 31 votos possíveis. Eliane Potiguara recebeu o voto restante.
O eco na inédita posse
A eleição de Ana Maria Gonçalves ressoa além dos muros do Petit Trianon. "Estou muito feliz com o resultado e, principalmente, por começar a fazer parte de uma instituição como a ABL, que lida com a coisa mais importante na minha vida: a literatura", declarou a escritora ao Estadão logo após o anúncio. Sua reflexão sobre o pioneirismo é perspicaz: "Além de ser um motivo para comemorar, é também um motivo para nós começarmos a pensar o que significam esses primeiros, esses únicos. Numa sociedade brasileira onde as mulheres negras são a maioria do extrato social, por que só agora?"
A escritora espera que sua entrada abra caminhos para outras mulheres negras, embora admita que a ideia de se candidatar fosse recente para ela.
"Uma das coisas mais cansativas nessa história das mulheres, e principalmente das mulheres negras, é esse pioneirismo. Essa coisa de ser o único em um lugar traz um peso muito grande", ponderou. Entre suas prioridades na ABL, Ana Maria Gonçalves citou a preocupação com a inteligência artificial na produção literária, visando à "preservação do trabalho dos escritores e dos artistas", e o desejo de atrair um público que, até então, não se sentia representado na Academia, para que este possa "estar lá, presencialmente."
Representatividade e reparação: vozes da cultura
A eleição de Ana Maria Gonçalves provoca discussões vitais sobre representatividade e reparação. A poeta Mel Duarte enfatiza: "Sempre digo que, para uma escritora negra, reparação é ser reconhecida e exaltada em vida. Logo, ter uma de nós ocupando uma cadeira da ABL é de extrema importância, pois reforça a necessidade de olhar para a produção intelectual e o resgate da memória de quem sempre esteve na base desse País."
Ela acrescenta, criticamente, que "mulheres negras representam o maior grupo populacional do Brasil. É incoerente não ocuparmos certos espaços de poder e importância. Se não estamos lá, é porque quem tem acesso não larga o osso.”
Vanessa Ribeiro Teixeira, doutora em Letras pela UFRJ, inverte a perspectiva: "Prefiro alterar a pergunta: o que representa para a ABL a eleição de uma escritora negra?” Para Teixeira, a eleição "reduz a distância entre a produção literária do nosso tempo e a casa institucional que deveria contemplá-la.
Numa perspectiva histórica, reconhece-se, finalmente, o lugar de destaque devido à escrita de mulheres negras, herdeiras de Maria Firmina dos Reis". A jornalista e escritora Ana Paula Lisboa, com a recente lembrança da tentativa de eleição de Conceição Evaristo em 2018 (que obteve apenas um voto), expressa: "Minha personalidade é rancorosa demais para perdoar o que fizeram: é como se tivessem rejeitado a minha avó."
Mérito e pluralidade para além do simbolismo
"A eleição de Ana Maria Gonçalves não é cota, muito menos favor. É um lugar digno de uma escritora que tem um dos livros mais importantes da literatura brasileira," afirma Ana Paula Lisboa, concluindo que "A ABL precisa mais da Ana Maria Gonçalves do que a Ana Maria Gonçalves precisa da ABL." Cidinha da Silva reforça: "Não se pode esvaziar a presença de Ana Maria Gonçalves por ser negra. É uma das maiores escritoras vivas do Brasil e seu livro, Um Defeito de Cor, alcançou espaço ímpar na literatura brasileira contemporânea."
Ela questiona a seletividade da ABL: "Setores majoritários da ABL podem tentar se manter alheios aos grandes debates que clamam por transformações sociais, mas seria de bom alvitre nos responder: por que Ana Maria Gonçalves, provavelmente, foi convidada, e a candidatura de Conceição Evaristo foi rechaçada? Por que Gilberto Gil pode ser membro da ABL e Martinho da Vila, não? Merecemos respostas." Martinho da Vila, inclusive, não recebeu votos em sua tentativa de eleição em 2010.
Com a chegada de Ana Maria Gonçalves, a ABL passa a contar com três acadêmicos negros: Domício Proença Filho (eleito em 2006) e Gilberto Gil (2021). Ela se torna a 13ª mulher a vestir o fardão, somando-se a nomes como Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Zélia Gattai, Cleonice Berardinelli e Heloísa Teixeira.
Atualmente, a instituição tem cinco acadêmicas em atividade, incluindo Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro, Lilia Schwarcz e Miriam Leitão. Apenas Nélida Piñon e Ana Maria Machado presidiram a Academia.
Michele Asmar Fanini, doutora em Sociologia pela USP, resume o significado: "A eleição de uma escritora negra representa um importante – ainda que tardio – marco histórico e simbólico."
Ela ressalta que a trajetória de Gonçalves "entrelaça dois marcadores sociais que, historicamente, se converteram em tabus para a ABL: o gênero e a raça, evitados, tanto quanto possível, sob a justificativa de que a instituição seria um espaço neutro e refratário a ditos ‘proselitismos’”. A cerimônia de posse ainda não tem data definida.
Da publicidade à imortalidade
Ana Maria Gonçalves, nascida em 13 de novembro de 1970, em Ibiá (MG), teve uma infância marcada por leituras diversas, de Jorge Amado a William Peter Blatty. Sua vida tomou um novo rumo aos 29 anos, quando, insatisfeita com a perspectiva de seu obituário, trocou a publicidade e a agitação de São Paulo pela tranquilidade da Ilha de Itaparica. Seu romance de estreia, Ao Lado e À Margem Do Que Sentes Por Mim, teve uma tiragem inicial limitada, vendida pela própria autora online.
O divisor de águas foi Um Defeito de Cor, resultado de cinco anos de dedicação – dois de pesquisa, um de escrita e dois de reescrita, totalizando 19 versões. Inspirado na história de Luíza Mahin, mãe de Luiz Gama, o romance de 952 páginas, publicado pela Record, conquistou nomes como Millôr Fernandes, Lázaro Ramos e o Presidente Lula.
A obra não só venceu o Prêmio Casa de Las Américas, como virou exposição no Museu de Arte do Rio (MAR), inspirou o samba-enredo da Portela e teve seus direitos vendidos para a TV Globo. Com 44 edições, Um Defeito de Cor já vendeu cerca de 180 mil exemplares.
Cidinha da Silva reitera a necessidade de ir além do simbolismo: "Não queremos que a eleição da Ana Maria Gonçalves seja um ‘cala-boca racializado’. Queremos mais escritoras negras naquele espaço de notoriedade positiva e em todos os outros, não apenas uma." A jornalista e escritora Eliana Alves Cruz concorda: "Ter uma autora negra ali não é nada. Meu medo é que a instituição passe o ferrolho para outras autoras negras depois que a Ana Maria Gonçalves entrar. Não podemos esquecer que o B de ABL é de Brasil."
Para Vanessa Ribeiro Teixeira, a representatividade na ABL deve ser "tão diversa quanto a nossa sociedade." Eliana Alves Cruz finaliza: "É espantoso que, em 2025, ainda tenhamos uma instituição tão majoritariamente branca e masculina. Seria bonito se a gente tivesse o Brasil representado na ABL.”