CIÊNCIA CONTRA A IMPUNIDADE | Notícia

'Detetives de crimes': larvas de insetos ajudam a esclarecer homicídios

Estudo na UFPE auxilia peritos, indicando tempo da morte e se corpo foi retirado da cena do assassinato. Envenenamentos também podem ser descobertos

Por Raphael Guerra Publicado em 26/05/2025 às 9:12 | Atualizado em 26/05/2025 às 9:16

No Brasil, onde uma média mais de 60% dos homicídios ficam sem solução anualmente, a ciência tem tido papel relevante para contribuir com as investigações dos crimes e diminuir a impunidade. E é interessante notar que pequenos detalhes estão fazendo a diferença. A análise de larvas de insetos encontrados nos corpos das vítimas está ampliando o leque de provas e contribuindo com o trabalho da perícia criminal - fundamental para garantir a materialidade do inquérito e apontar a autoria dos delitos.

A pesquisa é desenvolvida pelo Laboratório de Insetos de Importância Forense, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E os resultados pioneiros, ao longo dos últimos anos, têm sido satisfatórios e até curiosos, não só indicando a quantidade de dias em que a pessoa foi morta, mas também apontando indícios de que o corpo foi retirado da cena do crime e sugerindo até o instrumento usado na execução.

Os estudos científicos da entomologia forense, área especializada no estudo de insetos para auxiliar as investigações criminais, são liderados pelo professor Simão Dias Vasconcelos, coordenador do laboratório.

"Nossa pesquisa tem a missão de criar dados para o clima tropical. A análise começa com a coleta das larvas de insetos nos corpos que chegam ao Instituto de Medicina Legal (IML) no Recife. Elas são levadas ao laboratório e a gente cria até atingir a fase de mosca adulta para fazer a estimativa do do tempo de morte da vítima", disse.

O cálculo matemático é relativamente simples, como exemplifica o pesquisador: "Se a larva coletada demorou oito dias para chegar na fase adulta e, com nossos dados em laboratório e com temperatura semelhante, a gente sabe que ela demora normalmente 15 dias do ovo à fase adulta, podemos inferir que a morte ocorreu há pelo menos sete dias. Essa informação é muito relevante para o perito, já que após 72 horas (três dias) do óbito a medicina legal não consegue identificar esse tempo".

Cerca de 25 espécies de insetos foram identificadas pela pesquisa, algumas delas registradas pela primeira vez no mundo. Curiosamente, o estudo começou a ser desenvolvido após um estudante - hoje delegado da Polícia Civil de Pernambuco - procurar o professor para falar sobre os primeiros artigos científicos que falavam sobre o assunto. Os estudos desenvolvidos pelo laboratório da UFPE avançaram ao ponto de receberem reconhecimentos nacionais e internacionais pela contribuição como ferramenta para a elucidação de crimes contra a vida.

"Conseguimos validar os insetos como seres importantes na elucidação de crimes", exemplificou o pesquisador.

Segundo dados oficiais da Secretaria de Defesa Social (SDS), 3.448 mortes violentas intencionais em Pernambuco foram somadas pela polícia. Na lista estão incluídos os homicídios dolosos, latrocínios, feminicídios, lesões corporais seguidas de morte e os óbitos decorrentes de ações policiais. Com baixo efetivo para tanta investigação, a ciência e as parcerias com universidades se tornam fundamentais para o esclarecimento dos casos e punição dos autores dos crimes.

Ao longo dos anos, a pesquisa desenvolvida na UFPE identificou novos indícios curiosos e que podem ajudar os peritos criminais na produção dos laudos. O estudo apontou, por exemplo, que ovos podem ser encontrados em corpos em ambientes abertos, como vias públicas, cerca de cinco minutos após a morte, especialmente no horário diurno, ou seja, à luz do dia. Por esta razão, o grupo de pesquisa está investigando se as moscas conseguem acessar um cadáver na ausência da luz.

"Geralmente, esses ovos são colocados na região da cabeça, como boca e ouvido. Em mais de 90% dos casos. Mas também há situações em que são encontradas em outras aberturas naturais, como ânus e vagina. Um detalhe curioso: quando são encontrados no abdômen, pode sugerir que a vítima foi morta por um objeto perfurante, como uma faca, ou até mesmo por disparo de arma de fogo, porque a lesão acaba sendo uma porta de entrada que atrai as moscas", explicou Simão, que há 28 anos é professor da UFPE.

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Simão Dias Vasconcelos coordena a pesquisa no Laboratório de Insetos de Importância Forense - CORTESIA

Outra linha de pesquisa em desenvolvimento é a do local da morte. Em Pernambuco, não é incomum situações em que a vítima é assassinada em uma área urbana e o cadáver é escondido em matas ou espaços de difícil acesso, alterando a cena do crime e dificultando a localização de pessoas desaparecidas. Com a análise das larvas de insetos, é possível encontrar indícios de que o corpo foi retirado de um local para outro.

"Há moscas que são de áreas urbanas. Quando elas são coletadas em cadáver que está na zona rural, há uma forte pista de que a vítima foi morta e levada para outro lugar", disse o professor.

O trabalho científico também ajuda a inocentar possíveis suspeitos de crimes.

"Digamos que determinada pessoa foi filmada em um dia que não foi compatível com a data da morte. Ela pode estar apenas circulando na área. E, graças aos dados que a gente tem na análise das larvas, podemos dizer que o crime já tinha ocorrido, garantindo a inocência do suspeito."

COLETA DE LARVAS EM LOCAL DE CRIME

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Estágio de desenvolvimento entre a larva e a fase adulta da mosca - CORTESIA

Ao longo dos últimos dez anos, mais de 400 cadáveres que chegaram ao IML do Recife passaram pela inspeção dos estudantes do grupo de pesquisa em busca de larvas de insetos - graças a uma parceria entre a universidade e a SDS.

Alguns peritos criminais, com orientação dos pesquisadores, também estão fazendo a coleta na cena do crime, preservando a cadeia de custódia, para encaminhar para a análise no laboratório da UFPE.

O professor Simão Dias Vasconcelos explicou que os peritos criminais precisam redobrar a atenção no momento da coleta. "É preciso treinar o olho, porque no mesmo cadáver pode ter larvas velhas e novas. Se houver a coleta errada da larva, pode até culpar um inocente pelo crime. O ideal é pegar a larva mais velha para o cálculo do tempo pós-morte ser mais preciso", disse.

As moscas se afastam dos cadáveres para se enterrar e se proteger antes da fase adulta. Uma orientação dada a quem faz a coleta é procurar essas larvas no solo. Outra informação importante é apontar a temperatura do ambiente para garantir a análise mais correta.

"Os resultados que conseguimos em laboratório contribuem com o trabalho final dos peritos criminais, porque os laudos concluídos por eles são uma prova pericial para fortalecer os argumentos e punir os autores dos crimes", pontuou Simão.

O Laboratório de Insetos de Importância Forense, que está entre os três com maior produção científica do País, está finalizando um protocolo para ser distribuído à Polícia Científica como forma de contribuir com orientações para a coleta dessas larvas para a pesquisa.

ANÁLISE DE LARVAS PODEM DESCOBRIR ENVENENAMENTO

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Mosca na fase adulta analisada no estudo - CORTESIA

Outro detalhe curioso sobre a análise de crimes a partir dos insetos: também é possível descobrir se a causa da morte da vítima foi por envenenamento. Como o tempo é inimigo, a dificuldade nos exames toxicológicos surge nos casos em que o cadáver é encontrado com mais de cinco dias - porque a chance de os indícios desaparecerem são muito altas.

"Por isso a importância da entomologia forense. Se o inseto se alimentar de um cadáver que foi vítima de um envenenamento, ele vai acumular a substância química na cutícula externa, de uma forma inativa. É possível que a análise química dos tecidos do inseto indiquem a presença de cocaína, heroína, chumbinho, entre outras drogas", revelou Vasconcelos.

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